Para quem nunca viu tal esparrela, mas está farto de ver filmes de cowboys, a melhor imagem que posso transmitir-lhe dela é compará-la às portas vai-e-vem dos salões americanos do faroeste, só que em tamanho miniatural e assentes em posição horizontal de forma a abrirem apenas para baixo, para um buraco, tal qual um alçapão, daí resultando que, feita que fosse a entrada, impossível era a saída. Era o que se podia dizer «queda sem tiro», expressão a contrariar aquela velha e relha muito usada entre caçadores de «tiro e queda», e bem assim, para justificar a analogia, semelhantemente ao tiro mortal do xerife que, entrando de rompante e a pontapé nesses salões de portas giratórias, em menos de um ai saca do revolver e, tiro e queda, manda para o galheiro o pistoleiro procurado. A coisa, apesar de simples, tinha os seus quês, como aliás todos inventos do bicho homem que não caem do céu aos trambolhões, como os flocos de neve em tempo dela e em zonas frias da Terra. Vamos por alíneas:
a) A parte mais fácil da armadilha era um buraco aberto no chão, aproximadamente com um metro de fundura. Onde e como? Essas eras as primeiras perguntas que o «caçador furtivo» dirigia aos seus botões. Conhecedor dos terrenos que pisava, nado e criado neles a brincar e a guardar gado, ou a roçar matos para estrume ou lenha para a lareira, começava por matutar no assunto. A esparrela tinha de ser posta num local pouco frequentado por terceiros por forma a que só ele pudesse beneficiar do produto do seu engenho e trabalho. O que nem sempre acontecia, pois melhor do que um caçador furtivo, era outro caçador furtivo. Mas nada há na vida sem risco e o serrano, um dia a ser roubado e outro dia a roubar, tomando, embora, todas as precauções e sabedor de que na falperra-mundi cabem pobres como ricos, cada um buscando o objeto dos seus anseios ou necessidades, lá arriscava. Escolhia, de preferência, uma propriedade sua, uma leira de semeadura a beijar matagais, em zona de perdizes. Feita a opção, começava primeiramente por preparar o terreno em redor, por forma a que todos os carreiros e trilhos existentes por perto confluíssem ali, disfarçados com giestas, fieitos, carquejas e outros arbustos. Tudo a imitar a natureza, pois ele sabe que, até o bichinho mais inofensivo da criação tem os seus instintos de defesa e de sobrevivência.
b) Depois, e durante algum tempo, procedia aos exames preliminares. Ia verificando se os carreiros estavam puídos, se tinha de pôr aqui e mais ali um fieito, mais além uma giesta, tapar o que fosse preciso e conveniente, tudo a afunilar naquele ponto. Parava e procurava no chão aqueles três risquinhos a unirem-se num só ponto como se fossem três pés de cerejas, três risquinhos em leque, tal é a impressão digital que as perdizes, deslocando-se a pé, deixam no cartório notarial da sua residência e vida. Visto isto dia após dia, uma semana inteira, certificando-se por esses sinais de que era tão certo as perdizes irem ali diariamente esponjar-se ao sol depois de encherem o papo e despejarem os intestinos, semelhantemente a um cristão que religiosamente vai à missa aos domingos para encher-se de versículos bíblicos e despejar ali os seus pecados, testificado isso, dizia eu, tudo estava pronto e só faltava armar o «chó».
c) Consistia esta armadilha numa espécie de portas giratórias como acima ficou dito e agora, para melhor entendimento, comparo a uma janela com duas folhas, com os caixilhos laterais prolongados, à semelhança de uma padiola de 40 a 50cm de comprimento. As folhas, colocadas no interior dessa moldura, formavam uma autêntico alçapão e cada uma delas tinha por dobradiça um cordão feito de crina de cavalo ou rabo de vaca, material sempre disponível à mão do camponês, lavrador, pastor, tamanqueiro, ferreiro, caçador e o diabo a sete. Esses cordões, torcidos a preceito, tornavam-se uma espécie de mola que fazia retornar as portinholas à situação horizontal inicial, depois da presa ter sido engolida no buraco. Um pequeno batente impedia que elas abrissem para cima.
3 - Armadilha proibida, as suas pequenas dimensões facilitavam o seu transporte e ocultação debaixo de uma capucha ou banda de casaco. E era conveniente não a deixar escondida no monte, pois podia acontecer no dia seguinte estar lá apenas o sítio, na certeza tacitamente aceite, entre os habitantes da aldeia, de que não haveria apresentação de queixa do roubo na regedoria local ou esquadra de polícia mais próximas.
A hora indicada para colocar o «chó» era à noitinha, ao escurecer, mas com luz bastante para a coisa ficar nos «trinques». O aldeão sabendo, por experiência e convívio, que as perdizes se alimentam à tardinha antes de recolherem aos altos penates onde pernoitavam, para no dia seguinte regressam cedinho ao celeiro do costume, certifica-se ser um dos últimos sobreviventes humanos a andar por ali e procede à montagem. Instalado o equipamento cobre-o com uma ligeira camada de terra a que sobrepõe, para melhor disfarce, outra camada de folhas de arbustos. Mira, remira, dá uma olhadela em redor, benze-se e deixa o lugar com um «seja o que Deus quiser». Mas Deus, às vezes quer que outro habitante da aldeia seja mais madrugador e, em vez de perdizes, o dono, chegado mais tarde, só lá encontre as penas. Isso aconteceu à pessoa que está a escrever estas linhas, homem nado e criado na serra, aquele que, antes de se meter atrevidamente na arte das letras, se iniciou atrevidamente na arte da caça furtiva.
Os links que se seguem mostram como eu. a partir da experiência vivida em Cujó nos meus tempos de juventude, recuperei artesanalmente esta peça arqueológica, deixando uma ideia do seu funcionamento, primeiro, e depois, com uns toques de arte, imaginação e criatividade, fiz dele uma peça decorativa da minha biblioteca. É só clicar.
1 - http://youtu.be/hOmzcHu3gX4
2 - http://youtu.be/v3mshz8Nvl4?list=UU7F8Z0Zl7dH1As66bZKgmSg