Aquando da publicação do CATÁLOGO DA BIBLIOTECA DE AQUILINO RIBEIRO discorri sobre a obra do MESTRE e publiquei no "Notícias de Castro Daire", de 10-02-2005 e no «Boletim da Fundação Aquilino Ribeiro», no mesmo ano, um extenso texto do qual, muito a propósito, passados todos estes anos, atento às iniciativas sobre a divulgação da sua obra, destaco o seguinte excerto, adaptado aos dias de hoje.

E passados estes anos todos, olhando em redor, sou forçado a retirar das estantes da minha biblioteca doméstica dois livros cuja fotografia aqui deixo, um sobreposto ao outro. O maior, com o título "ARTES E LETRAS", tem 193 páginas e 33 x 25 cm de medida. O mais pequeno (capa azul) sobreposto ao maior, é o dicionário "LILLIPUT", tem 639 páginas e 05 x 04 cm de medida. Cabe na palma da mão de uma criança. Face às fotos, os meus amigos pouco familiarizados com MESTRE AQUILINO, que, se calhar, nunca viram o dicionário "LILLIPUT", apreciem o DIAMANTE lapidado com aparo de aço, transcrito mais abaixo ilustrado com as fotografias dos livros e de dois Globos Terrestes.
Republicano, batendo-se pela implantação da República, logo o país ficou infestado de «reinóis de taifas», aqueles que, ultimamente, numa Democracia partidocrata, em infindáveis reinados, se sucedem a si próprios legitimados pelo voto. Outros há que, de longe em longe, como convém para não popularizarem o seu estatuto, resolvem deixar os paços urbanos em que residem, para visitarem os seus rústicos domínios na província, onde vassalos e tamborileiros se apresentam a exibir as suas colgaduras, na tradicional, costumeira, agradecida e servil vénia aos senhores, já sem direito de aposentadoria.
Viajar, com o Mestre, até ao Royaume de Liliput e absorver, gota, a gota, a ironia posta na sua descrição magistral, lá em França, cá em Portugal, em todo o lado onde se possa vislumbrar a Lilipucia de Swift: numa ilha perdida no meio do mar, ou numa veiga lavradia entre pinais, soutos e carvalhedos. Assim:
«Em volta uma muralha, frágil, mas feudal, quanto à investida de estrangeiros. Lá dentro no hameau é-se uma torre, é preciso amputar as nossas dimensões, adelgaçar a voz para falar de liliputianos, reduzir as ideias do tamanho de nozes ao tamanho de avelãs ou caroços de cereja (...) Deus, grande Deus, porque não fizeste o nosso mundo mais liliputiano ainda, e não nos deste um hameau nos teus Campos Elíseos? Da nossa pequenez, da nossa miséria, dos nossos risos e beijos poderias ter feito o espectáculo da tua corte altíssima: seria o enlevo teu e a beatitude nossa! Seríamos obedientes à tua divina graça sem precisão do Decálogo, nem de Voltaire, nem da Filosofia. Amaríamos, daríamos cambalhotas e o raio visual da tua grandeza não toparia Eva a engolir a maçã, nem Caim a matar Abel» (Páginas do Exílio)g
Assim mesmo. Um escritor na sua plenitude. Livre, crítico, «independente», «original» e «bárbaro», um escritor que se vangloriava de nunca ter sabido «o que era a servidão aos preconceitos, ao poder, às classes, nem mesmo ao gosto do público». Ele mesmo, ele próprio, a meter a gazua no petrificado edifício das mentalidades e a esforçar-se por esboroar os valores e poderes institucionalizados.
Não. Não sou aquiliniano no sentido académico do termo. Não tenho saber nem talento para o ser. Não gravito em torno das capelinhas académicas que, pelos «rossios» e palcos das instituições citadinas, vão ocupando os seus neurónios no estudo e explicação do ideário e obra do Mestre. Rústico, solitário, qual lobo ibérico em vias de extinção (onde é que eu já disse isto?), contento-me em «uivar» aqui para as bandas do Montemuro e da Nave. E, no soalheiro das suas encostas, envolvido pelo aroma do rosmaninho, pelo sussurrar dos ribeiros e rios, pelo silvo penetrante do milhafre nas alturas, asas abertas a querer abraçar o mundo, pelo assobio dos ventos frios, livres e bravios, qual divindade invisível a despertar-me os instintos, as leituras e as analogias, tenho para mim que o Aquilino original, autêntico, republicano, revolucionário, anticlerical, impregnando as suas obras de erotismo, de prazer e de vida, de crítica à hipocrisia social, é bem diferente do Aquilino mediatizado, sobretudo quando a mediatização é feita por aqueles que, católicos, apostólicos, romanos, ébrios de áuga benta,canonicamente, de joelhos e submissos aos valores e poderes que ele próprio combateu, se apresentam como lídimos cultores e divulgadores da sua obra.

Nota: excerto do texto publicado em 2005 no jornal "Notícias de Castro Daire" e no "Boletim da Fundação Aquilino Ribeiro".