A ECONOMIA, OS AFECTOS, AS PESSOAS E OS POVOS
Para este NONO APONTAMENTO sobre a ESTRADA NACIONAL Nº 2 (a futura ROTA TURÍSTICA NACIONAL, ou como lhe queiram chamar) escolhi a minha ida para Viseu, em 1958, com 18 anos de idade. Já aludi à minha ida a Lamego, dois anos antes, na companhia de um burro com umas cangalhas em cima, ESTRADA NACIONAL N. 2, abaixo eacima, buscar 40 litros de TRATOL para alimentar o motor LISTER que fazia girar a moagem do meu pai.
Foi isso. Na altura, a relação do Estado com o cidadão limitava-se a três coisas simples: a) o cidadão era obrigado a frequentar a Escola Primária; b) obrigado a cumprir o serviço militar; c) obrigado a pagar os impostos profissionais e a décima dos bens rústicos e urbanos que possuisse. Feito isso o cidadão que se amanhasse. Os seus deveres de cidadania estavam cumpridos e o Estado liberto das contrapartidas na assistência, no saneamento básico, na eletrificação, nas rodovias etc. etc. Se era preciso um fontanário público as Juntas de Freguesia que coutassem parte dos baldios e que fizessem dinheiro com a arrematação da torga para carvão. E ó-la-ri-ló-lé!
Num contexto desses, onde se não saía da cepa torta, feita a quarta classe, faltava-me cumprir o serviço militar para estar quite com o Estado. Havia que fazê-lo quanto antes e logo que a idade mo permitisse, que era aos 18 anos de idade. E por entender que, em vez de camponês e de almocreve podia dar o meu contributo à mercancia das letras (mesmo que me ficasse por aprendiz) resolvi abandonar a laboriosa vida camponesa e assentar praça como voluntário no Regimento de Infantaria 14, onde me foi atribuído o número NOVE.
A partir daí perdi o nome próprio e, para tudo e para nada, era sempre o número NOVE que respondia à chamada para o que desse e viesse, intra e extra muros do quartel. Só retomei o nome de batismo quando despi a farda, tal como todos os camaradas de camarata. Ainda hoje, ao ver as fotografias que tirámos em grupo, eu os identifico pelo número, pois eles, tal como eu, perdemos a identidade no cumprimento de um ato de cidadania. Ao sair na Porta de Armas do Quartel, munido da respetiva licença de saída, não saía Abílio, saía simplesmente o soldado raso número NOVE.
E foi esse soldado raso número NOVE que, com 18 anos de idade, se aventurou DUAS vezes a calcorrear a pé firme a ESTRADA NACIONAL N. 2, na distância que separa Viseu de Castro Daire e o restante percurso de caminho e atalhos que da vila do "Crasto" levavam a Cujó, onde eu tinha a família e continuava a ser conhecido por ABÍLIO.
A primeira vez fiz isso na companhia de um camarada natural de SOUTO DE ALVA. Para ele, nem número, nem nome. Era o rancheiro e chegava. Por iniciativa sua as botas da tropa que nos entregaram à entrada e éramos obrigados a devolver à saída, com sola ou sem ela, aguentaram a caminhada sem queixume. E nós, com os pés metidos melas, chegámos ao destino que nem gatos pingados. Cerca do Rio de Mel, desencadeou-se tal trovoada e chuvada que não nos deixou seca uma polegada do corpo. Pernoitei na casa dele, em Souto de Alva, com a roupa pendurava nos varões do caniço da cozinha, onde era costume secar-se o fumeiro. Os pais já estavam deitados e a lareira apagada de fresco. Estoirados de fadiga fomos dormir. No dia seguinte, escorrida a roupa, vesti-a ainda molhada e retomei a marcha. Destino: Castro Daire, Fareja, Farejinhas, Cujó. Aquilo era um saltinho.
Na segunda vez, o número NOVE, impelido pelas saudades do Abílio, tomou a iniciativa e meteu-se a caminho sozinho. Tinha 18 anos e o que eram cerca de 50 quilómetros de faixa de macadame para essa idade? Era só dar corda às botas e toca a andar! Mas há dias de sorte. Ali pelo sítio do Campo, vindo de Viseu com destino a Castro Daire, apareceu-me pelas costas um automóvel. Fiz sinal de querer boleia. O condutor parou e perguntou-me o destino. Respondi: «Castro Daire». Retorquiu: «Está com sorte, entre!». Abriu a porta, mas não abriu mais boca. Eu, mais por acanho do que por educação, imitei-o. Não trocámos palavra em todo o percurso.
Era um homem dos seus 50 ou 60 anos. De chapéu metido na cabeça, olhos na estrada, circunspecto, ensimesmado, nem um trejeito de rosto, nem um olhar para o pendura. E eu, de relance, via nele o perfil pálido de um busto histórico de carne e osso. Há bustos e perfis esculpidos em mármore que transmitem mais vida e comunicação do que ele. 
Chegados à vila de Castro Daire, parou junto ao coreto para eu sair. Muito acabrunhado, perguntei: «o senhor quer um cafezinho?» Resposta dele, pronta e seca: «vá à sua vida!».
E fui. Mas nunca me esqueci do facto, nem daquele homem tão enigmático, de chapéu e poucas falas. Praticar um gesto humano e simpático, um gesto digno de registo e guardado para sempre no baú do meu crescimento de relação com o mundo e com as pessoas, dar boleia a um soldado que encontrou na estrada sem perguntar sequer quem era, nem para onde ia, é uma atitude deveras singular e de respeito, ainda que intrigante. Pela minha parte, procurei, mais tarde, indagar quem teria sido aquele bom samaritano e, regressado de África, o mais que consegui apurar foram dois nomes: de chapéu e a proceder assim, só podia ter sido o Dr. Maneca ou o Senhor Artur Leitão. Ambos tinham carro, na altura. E ambos moravam para os lados da Igreja Matriz, direção que o carro tomou, mal me apeei.
E aqui chegado, julgo que justificado fica o subtítulo que coloquei nestes apontamentos: "A ECONOMIA, OS AFECTOS, AS PESSOAS E OS POVOS".
Com a miséria do pré de soldado raso, sem dinheiro no bolso para pagar o bilhete da camioneta, como podia eu esquecer um gesto humano destes, sobretudo se na minha memória se mantinha arquivada e viva a fadiga, a trovoada e a molhadela da aventura anterior?
Muitos anos depois rodei na ESTRADA NACIONAL N. 2, já asfaltada, em carro próprio, com a FAMÍLIA dentro. E nessa estrada continuo a rodar ainda, de carro ou de mota (agora sozinho), quando necessito ou quando me apraz. Castro Daire/Viseu ou Castro Daire/Lamego/ Régua/Santa Marta e vice-versa. As fotos que ilustram este apontamento assim o atestam. E atestam também a minha ralação afetiva e utilitária com a via rodoviária que está em vias de tornar-se uma ROTA TURÍSTICA NACIONAL (ou como lhe queiram chamar) a fim devolver um pouco de vida a este Portugal Periférico que persiste em manter-se de pé. Portugal cujos residentes resistentes chamaram a si, com toda a legitimidade, os cognomes de conquistadores e povoadores atribuídos aos nossos primeiros reis. Residentes que não aceitam ser riscados da HISTÓRIA E GEOGRAFIA DE PORTUGAL, com turismo ou sem ele.