Trilhos Serranos

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domingo, 09 abril 2017 08:58

DELFIM

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HISTÓRIA COM GENTE DENTRO

Delfim era o seu nome. Em Castro Daire e arredores, gente de pé descalço ou de sapato, senhoras e senhores, todos o conheciam assim. Fotógrafo de profissão, morava no Largo do Espírito Santo, sítio também designado "Feira das Galinhas", por ser ali que, em dias de feira, eram vendidos esses animais de pena.

Quem conhecia as suas condições de habitabilidade não lhe invejava a sorte. Espaço com uma porta para o largo, a sua casa, assim para o comprido,  assemelhava-se mais a uma mina de volfrâmio a furar a serra, do que à moradia de um cidadão a residir na sede do concelho, em meados do século  XX. Sem água canalizada nem saneamento, tal como as demais na vila, os dejetos eram lançados na rua e ele, todas as manhãs, para se espreguiçar e fazer as suas lavagens matinais, recorria ao fontanário público de pistão, levantado perto da sua porta. 

E certo é que onde as condições higienes são poucas,  abundante se torna a fauna do costume, parasitária, indesejável e incomodativa, ainda hoje a chegar às nossas escolas.  Na serra, o camponês, habituado a vê-la solitária ou em ninho por tudo quanto era prega de saia ou costura de calça, eternizou, não sem bastante malícia, tal fauna na quadra popular: o piolho e mais a pulga, foram para a serra levar, o piolho lavra fundo, a pulga pincha pró ar".

Homem baixo, a atirar para o forte, descuidado no trajar,  bexigoso de cara, cabeleira à Einstein, de poucas falas, bem me lembro dele nas suas idas a Cujó a fazer pela vida, tal como ia às restantes aldeias do concelho, em dias de festas e romarias.

Fotógrafo artilhado com as tecnologias do seu tempo (anos 50 do século XX), abria o saco pessoal que transportava às costas ou num burro (não sei se seu, se emprestado) fixava um CAIXOTE munido com um capuz num tripé, punha no chão, por perto, uma bacia com líquido e eis um mini-laboratório fotográfico pronto a fazer o retrato de quem quisesse. Era só os interessados porem-se a jeito com indicações suas...mais para aqui, mais para ali....assim está bem.

Com o fole do caixote recolhido, mão lesta na tampa da lente, fixa o cliente e... "olha o passarinho". Não havia "clic". Habituado a trabalhar em dias de sol ou de nuvens, ele tirava a tampa e logo a repunha, calculando o tempo de exposição do negativo, pela intensidade da luz. 

Era o tempo da foto "à lá minute" e eu, pequeno ainda, ficava-me, por perto, encantado a ver tudo aquilo. Para mim ele era um MÁGICO, o primeiro que vi na vida e a magia era feita quando ele se metia com os ombros, as mãos e a cabeça no capuz. O que é que ele faria ali dentro, com quem falaria às escondidas para, logo depois, esticar o fole da máquina e, de seguida, colocar à sua frente, colado numa pequena tábua ao alto, um retângulo de papel, repetir o gesto e só depois disso, à vista de toda a gente, mergulhar numa bacia o mistério da sua arte? 

Era só um instantinho. Os retratados começavam a aparecer no papel muito lentamente. Para mim, que não perdia pitada, aquilo se não era bruxaria, era milagre. Sacudidas e secas, as fotografias não tardavam a passar das mãos papudas do bruxo/milagreiro para as mãos dos retratados. E eles a mirar e a remirar as suas figuras tão encantados quanto eu.

Foi essa imagem que guardei desse homem até que vim a saber, já adulto, que além de fotógrafo, ele era também pintor. Sem espaço doméstico próprio, o Largo do Espírito Santo (exceto em dias de feira quinzenal) era o seu "ateliê". Ali levantava o cavalete e estendidas as telas. Depois com paleta e pincéis na mão, toca a fazer cópia "naif" de fotografias tiradas previamente ou a desenhar e pintar figuras saídas da imaginação de momento. E se em Cujó eu o considerava um MÁGICO, um MÁGICO o consideravam as crianças da vila que assistiam ao momentos das suas criações. E não foram poucas, hoje todas adultas, que me contaram os momentos dos seus encantos.

Já algumas vezes me referi esporadicamente à sua pessoa e à sua arte. Mas, tal como fiz com o Manel da Capucha (pedinte andarilho) com o Zeca Carneiro (factotum)  com o Mateus (engraxador) o Zapa (bate-chapas) e até com o Geraldo, de Tete (guarda-fios sertanejo) todos eles pessoas humildes e singulares, com a sua carga de artistas e excentricidades, mas sem fama de se lhes colar às mãos bens alheios, como acontece hoje com certos senhores engravatados, eu devia-lhe uma crónica exclusiva, ainda que tenham sido todos eles (e não só), "versos sem rima"  que me levaram a escrever o seguinte texto, junto de uma ÁRVORE SECA:

Em meu redor

Um mundo de poesia e cor.

Poesia não escrita

Não falada, não dita

Não canónica, desarmónica

Sem métrica de antologia,

Mas poesia é!

Mil olhos me lêem,

Porém, só dois vêem

Que morri de pé.

Seca,

Raízes fincadas no chão

Neste poema de cor e vida

Que me rodeia

A perder de vista, 

Mirada de baixo a cima,

Sei que sou da composição

O verso sem rima.

Abílio Pereira de Carvalho

Agosto/2012

Mas voltando ao senhor Delfim, além  da tela que aqui reproduzo, pintura "naif", cópia fiel de uma fotografia que nos mostra o antigo Jardim Público e mais toda a encosta poente do CALVÁRIO, conheci mais duas telas suas, em estado irrecuperável. Ambas tinham um cavalo ao centro. Penduradas numa parede, a humidade e o desleixo do proprietário encarregaram-se de lhes dar fim. Da minha parte, nem valeu a pena fotografá-las, mas esta, em bom estado, encaixilhada e enquadrada na objetiva da minha câmara fotográfica, aqui está como documento histórico de uma profissão e de uma vida. No momento de fotografá-la pareceu-me possuir um pouco da MAGIA que eu via nesse feiticeiro, quando eu era pequeno. Ao divulgá-la mais não pretendo do que prestar HOMENAGEM a um homem humilde que veio para Castro Daire desterrado (dizem que pelo crime de falsificar moedas) e por cá ficou, até morrer. A ele se deve grande parte das fotos que por aí circulam hoje no FACEBOOK, sobre Castro Daire, não sendo eticamente correto sobrepor-lhe a nossa linha de água pessoal, como se delas fossemos autores.  E dele é também a foto postada na antiga carta de condução do senhor Narciso, do Forno da Serra.

E vejam só o que lhe reservou a sorte macaca. Vivendo toda a vida num tugúrio urbano sem água canalizada nem saneamento básico, quando, nos anos 80 do século XX, se começaram rasgar as ruas e a abrir as valas para isso em frente de sua "casa", ele, já bastante idoso e pesado, caiu numa delas e, em resultado da queda, foi transportado numa ambulância para o Hospital de Viseu, dando-se na viagem um trágico acidente. Nele, o senhor Delfim, o MÁGICO da minha infância, disse adeus ao mundo. Morreu um ARTISTA e ninguém falou nisso. 

Estou eu a fazê-lo hoje, mesmo que tardiamente, como é próprio dos historiadores. 

Abílio/abril/2017




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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.