Mal nasceu, no seu natal, logo vira um mundo desigual: reis agasalhados com mantos brocados, em seus camelos montados, carregados de ouro incenso e mirra: sinais de riqueza. E, ao lado, pastores de peles, lã e de linho vestidos, nas mãos os cajados, rotos esfarrapados: sinais de pobreza!
Passados dois mil anos, os vendilhões voltaram p'ra dentro e na rua (quem não vê isto?) ficaram sem abrigo esses pobres de Cristo (vejam bem o que digo) à espera das sobras que caem da mesa dos ricos que aliviam a consciência com esmolas. O mundo não mudou de rumo. E tudo quanto pregou, de pouco ou nada serviu. Muitas luzes, muitas estrelinhas, muitas cruzes, tudo, do melhor e do pior, se vende e compra nesta sociedade de consumo. E, face à realidade passada e presente, Senhor, perguntamos já cansados, será diferente o devir? Certo, certo, é que o exemplo e o sermão de Jesus viraram rotina e os seguidores em vez da doutrina servirem, servem-se é da doutrina.
Cristo morreu, ressuscitou, subiu ao céu, pois na terra não ficou. Pudera! Mas se voltasse a encarnar, se descesse das alturas e viesse até nós ver o negócio das escravaturas (como são e como eram), seres humanos vendidos novamente em leilões, preço feito pelo comprador, ou comprados ao preço de quem se vende, ou aceita ser vendido, ser mercancia na ansa de mercadores, jogadores de futebol, esses campeões da bola e dos relvados, o escol de gladiadores deste tempo que corre, hinos, clamores, ovações e urros coloridos das tribos embandeiradas nas bancadas intramuros, vivas e morras com polegares para cima ou para baixo, todos os gestos e esgares de rosto. Ai, que desgosto, se Jesus visse os festejos, a abastança de braço dado com a fome, a riqueza com a miséria, o consumo embrulhado em papel multicolor com muitas fitas e muitos laços, quadra festiva afogada em beijos e abraços, por força do consumo que se gerou em torno do seu nascimento, em Belém, ou em torno do substituto velhinho de barbas brancas, livre de insónia, oriundo da Lapónia, que, de noite (eu não confundo) por magia, para encanto de crianças, se desloca no céu dentro de uma carroça puxada a renas, sem asas, voando somente com pernas, se visse tudo isso, difundido pela televisão, pela Internet, pelo Facebook e demais tecnologia de comunicação que ele jamais pensou ou sonhou, se visse que o holograma não é um milagre da sua mão, nem a clonagem uma fantasia do mago Simão, que com ele competia em tais artes, longe do "penso, logo existo" de Descartes, se ele visse tudo isto, dizia eu, Cristo, imediatamente morria e refugiava-se no Céu, sem ser crucificado.
Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.