CAÇA - O VALOR DA FISGA
Nos meus trilhos da investigação, mira posta nas fontes de conhecimento, manuscritas e impressas, quando lecionava na Escola Preparatória de Castro Verde, assestei pontaria num documento existente no arquivos da Câmara Municipal (um livro de atas) relativo ao ano de 1680.
A folhas tantas surgiu-me o registo de uma Postura Municipal reportada ao “ROL DOS PARDAIS”. Claro que, ávido de conhecimento, tal como o caçador disposto a saborear a peça em que põe a mira, não larguei o gatilho até chegar ao fim da leitura.

Dei conhecimento público da caçada no boletim “Castra Castrorum” que, então, se editava naquela vila, no qual colaborava a pedido do seu fundador, um jovem advogado, Dr. José Guerreiro, colaboração que nos tornou amigos, até hoje. Ele em Castro Verde e eu em Castro Daire.
Ora, neste tempo de Facebook e similares, suportes de escrita sem necessidade de papel, caneta e tinta, tem cabimento dizer que esse boletim chegava aos seus leitores policopiado com os textos batidos à máquina de escrever, em papel de cera. A duplicadora automática (tecnologia de ponta à época) fazia o resto.
Tem cabimento lembrar isso e também trazer à tona o dito “ROL DOS PARDAIS”, pois, se diferentes eram os tempos de escrita e sua duplicação, bem diferente é hoje também a forma de pensar sobre a natureza e, garantido é que nenhum vereador municipal se atreveria atualmente a subscrever aquela Postura Camarária. E não estou a ver o «porteiro» municipal postar-se à porta da igreja, ao fim da missa, e lançar «pregão» do seu conteúdo, sem sair de lá corrido à pedrada ou coberto de expressões ligadas à sua santa mãezinha, como soe fazerem as pessoas que têm o dicionário vernáculo na ponta da língua.
Eis o texto::
“Aos quinze dias do mês de Abril de mil seiscentos e oitenta anos, nesta vila de Castro Verde, perante mim, escrivão da Câmara, apareceu Francisco Guerreiro, porteiro deste concelho e por ele me foi dado fé que ele, por virtude e mandado dos oficiais da Câmara desta vila, pregoava para toda a vila ao domingo na porta da igreja, saindo a gente da missa, para que todos tivessem notícia do pregão da postura da Câmara sobre os pardais. Em que o dito porteiro pregou que cada morador deste povo, assim da vila como do termo da légua a dentro, trouxesse, como era obrigado a trazer, em cada um ano, meia dúzia de pardais, sendo novos, e sendo velhos quatro, com pena de duzentos reis para o dito concelho em que seria condenada toda a pessoa que os não trouxesse. E neste presente ano de mil seiscentos e oitenta os levassem à casa do escrivão da Câmara para (ele) haver por desobrigados todos aqueles que lhe apresentassem a dita quantia de pardais. E de como o dito porteiro, por mando dos ditos oficiais, pôs em execução e apregoando a dita postura da Câmara” (...) dou fé”.
Na contracapa desse livro, em pele genuína, lia-se o título seguinte, que eu destaco a negrito e letra maiúscula: «ROL DAS PESSOAS QUE TROUXERAM PARDAIS NESTE ANO DE 680».
Título logo seguido dos nomes de 112 moradores da vila e termo, bem como o número de pardais que cada um deles entregou. Ao todo somaram 1.102 pardais, o que corresponde a uma média de 10 pardais por cada morador identificado. E ao nome de alguns moradores, para além da identificação pessoal e respetiva morada, junta-se a sua profissão: alfaiates, tecelões, almocreves, ferradores, sapateiros, barbeiro, pedreiro, tendeiros.
Desde logo anotei estas profissões, pois visando esta Postura, certamente, a proteção das searas, que tinham nos pardais “uma praga” constata-se que ela se aplicava a todos os munícipes e não somente aos agricultores.
Aconteceu que a sua redação viria a ser alterada, posteriormente, e os moradores em vez de entregarem os «pardais inteiros, novos ou velhos» passaram a entregar somente «as cabeças» deles. Donde se infere (especulação minha) que os «oficiais da Câmara» (os vereadores) procedendo à alteração da Postura, visaram esvaziar as suspeitas e falatório que, eventualmente, corria no povo. Os pardais serviriam para saborosas arrozadas em casa do escrivão que os recebia. Alterada a letra da Postura e com a entrega, somente, das cabeças dos pardais, acabava-se a suspeita e o falatório.
Dito isto, e extraídas as conclusões permitidas pelo documento, sabedores de que os homens do campo, os lavradores, sempre souberam usar esparrelas para apanhar a bicharada que lhes roía ou debicava a lavoura, resta saber quais as “armas de caça” a que botavam mão os «alfaiates, tecelões, almocreves, ferradores, sapateiros, barbeiros, pedreiros e tendeiros» para cumprirem a sua obrigação de munícipes.
Ora, pondo de lado a hipótese de que eles caçassem pardais com balázios de arcabuz ou bacamarte, e não sendo de crer que fizessem uso das armas do seu ofício, v.g. os alfaiates caçassem pardais a laço feito com as linhas de coser roupa; os ferradores atirando-lhe com o martelo; os sapateiros mandando-lhes as sovelas como setas e os barbeiros a pegarem-nos com bolinhas de sabão, etc. etc. eu alvitro que, para o efeito, estes profissionais, para cumprirem o apregoado à porta da igreja, ao fim da missa, e escaparem ao pagamento de 200 reis para os cofres do concelho, recorressem à mão-de-obra disponível, isto é, às crianças, aquelas que, no campo, nas aldeias e vilas rurais, ignorando, então a expressão «trabalho infantil», mas conhecendo bem o adágio «quem não trabuca, não manduca», melhor dominavam a arte das esparrelas tradicionais. Tornados, assim, caçadores em idade escolar, quando escola não havia. Todavia, escolarizados estavam no adagiário popular «rebeubeu, pardais ao ninho» (perdoem-me todos os que não gostam do adagiário camponês, que mete todo o tipo de bicharada) e, por isso, sabiam muito bem quando, como e onde caçá-los. E o que me leva a pensar assim?
Devo dizer que, ao assestar pontaria nesta postura camarária, logo me ocorreu à memória o tempo em que, na serra, nos meados do século XX, guardando gado, sendo eu ainda menino, fui hábil a manejar, não a esparrela tradicional, mas a «funda» e essoutro objeto com forma de “Y”, conhecido por FISGA, em cujos braços se atavam dois elásticos com um trapo a meio para nele assentar a “pedrinha” que servia de projétil. A «funda», dois cordéis com laçadas nas pontas e uma tira de trapo a uni-los destinada a segurar a pedra, punha-me no lugar de David e o Golias era qualquer penedo distante, contra o qual, depois de meia dúzia de voltas com o braço a ganhar balanço, soltava uma laçada, e arremessava a pedra, treinando assim a pontaria e a força. A FISGA, lembro-me bem: descoberto o alvo, melro, gaio, rola ou pardal, braço direito estendido, o polegar e o indicador da mão esquerda a servir de tenaz, segurando o projétil, elástico esticado, pontaria feita...záz...era “tiro e queda”. Pois era, assim mesmo, daquele jeito. Só muito mais tarde eu soube o que era pôr uma espingarda à cara e...tau... tau..”tiro e queda” ou...tau ...tau... ”tiro e foge”.
Quando li aquela POSTURA MUNICIPAL, em Castro Verde, já eu era um caçador encartado e tinha uma arma de calibre 12, monogatilho de canos sobrepostos. Um senhor! Mas a leitura desse documento não só me fez volver à minha juventude, mas também ao ano de 1680 e às, eventuais, artes rurais de caça e a sua aprendizagem de tenra idade. Enfim, fez-me apreciar e valorizar a FISGA, bem posterior à armadilha de laço. Um «brinquedo» manufaturado por mim, arrancado à pernada de uma piorneira.
Outros tempos. E, pelo que vou vendo, creio que a eles teremos de retornar para que, diminuídas as armas de repetição, as nossas serras, campos e vales voltem a ser povoados com a bicharada de antanho, efetivos tais e quantos que legitimem Posturas Municipais semelhantes à de Castro Verde, com vista manter o equilíbrio e a sustentabilidade do ecossistema de que fazemos parte.