AS ALQUILARIAS
“Não. Não é fácil fazer a história dos transportes públicos rodoviários, quando queremos identificar os pioneiros que se dedicaram a tal empresa na área de Castro Daire. Neste, como noutros domínios, onde as fontes escritas escasseiam e, por isso, os arquivos se apresentam pouco mais que mudos, calcorrear o passado não se faz sem tropeções e muitos passos em falso. Hoje associa-se o conceito de "tranportes públicos" rodoviários a veículos motorizados, mas não era assim nos tempos idos. Então havia os coches, as diligências, os trens, os landeaux, os carros de bois e tantos outros meios de transporte puxados por animais, geralmente cavalos, muares e asininos.
Com o reduzido, se não ínfimo apoio documental escrito, é tarefa árdua deslindar os nomes dos primeiros empresários, o volume dos seus negócios e trajectos percorridos. Mas as dificuldades, são também desafios. Elas espevitam a imaginação e obrigam o investigador (o historiador) a mudar de rumo em busca de novos caminhos, de novas fontes, quando as portas mais fáceis se encontram fechadas ou as informações orais colhidas não são coincidentes, revelando-se o mais das vezes contraditórias apesar da idoneidade dos anciãos que as prestam.
Quis o destino, no entanto, que alguns jornais, que se publicavam em Castro Daire, desde o fim do século passado, século XIX, até meados do século XX, chegassem aos nossos dias em arquivos particulares, desse modo, à falta de arquivos empresariais específicos, serem o único recurso seguro a que se pode deitar mão com vista a fazer-se luz sobre o problema. O importante era que esses jornais tivessem sido veículo de notícias ou anúncios reportados ao assunto.
Havia que folheá-los um a um. Havia que estar atento aos títulos "desastres", "acidentes", "tragédias" "transportes" "passeios" e quejandos. E tal como o caçador define o alvo para acertar a pontaria, o investigador (historiador) selecciona a matéria de investigação. E os títulos lá estavam à espera de leitura. Não com a frequência com que aparecem hoje na nossa imprensa diária mostrando o que se passa nas nossas estradas em resultado da velocidade e do progresso, mas para informarem de "acidentes" ou "desatres" de tipologia bem diferente: acidentes em pedreiras, em minas, quedas de árvores, pancadas e facadas ou, então, carros de «bois a irem por ribanceiras abaixo».
Todavia "quem porfia sempre alcança".
(...)
Estamos no tempo em que os "ralys" fariam parte do futuro. Eram coisas do porvir. Nessa altura as corridas do gênero faziam-se não sobre quatro rodas, mas em cima de gericos e bicicletas. O jornal “A Voz do Paiva”, nº 452, de 24 de Maio de 1908, informa o público leitor que a Comissão Organizadora das Festas do Presépio e Santo Eufémia incluiu no programa "corridas de gericos e bicicletas".
O primeiro prémio constava de uma medalha de ouro, no valor de 2$250 reis, e era destinado ao indivíduo que se apresentasse "mais bem vestido" e com o gerico "mais bem engalanado". O segundo prémio era uma medalha de prata para o melhor corredor de bicicleta, e o terceiro, uma garrafa de vinho do Porto, para o mais rápido corredor de asinino.
A avenida das Acácias (actualmente aquela que fica à frente dos BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS) era o palco onde se travaria a competição entre os burriqueiros e ciclistas. Estes tinham de mostrar o que valiam, pedalando até à Ponte Pedrinha.
Novidade, nesse tempo, era também um passeio a Mões., de "landeau", claro está, ainda que se fosse ali a convite do comendador Oliveira Baptista para se saborear um delicioso jantar, em sua casa.
Chegados que somos ao ano de 1909 o jornal nº 487, de 24 de Janeiro, anuncia os dois primeiros carros de aluguer, ambos com "praça" em Alva. Um era propriedade de Manuel Maria Barros que alugava "para todos os pontos viáveis um carro de duas rodas puxado por um cavalo por preços módicos". Os interessados tinham de concertar-se com Manuel de Almeida Feijão. O outro proprietário era João José de Lacerda. Este "aluga em Alva um carro de quatro rodas puxado por um cavalo por preços convidativos para todos os pontos viáveis". O filho, Júlio de Almeida Baptista, é que tratava do negócio.
Como se vê, os animais continuavam a ser a força de tracção utilizada nos transportes e também na lavoura, pois a vila revestia-se de características vincadamente rurais no princípio do século. Uma notícia de 1911 lembra às autoridades a necessidade de regulamentarem a tiragem dos estrumes das lojas, pois era impossível passerar-se na estrada em virtude do mau cheiro que exalavam os estrumes remexidos. O cheiro impestava a estrada e "toda a vila". (221). São também frequentes as notas da redacção alertando as autoridades para a "chiadeira" dos carros de bois. Assim: "é tempo de fazer entrar os lavradores na ordem", tal como terminava uma das notas publicada no jornal nº 504, de 23 de Maio de 1909.
Os escribas do tempo, conhecedores da realidade que os cercava, habituados a verem os féretros a caminho do cemitério em cima de carretas, não desperdiçavam as novidades que se íam registando no mundo acerca dessa matéria. E o uso introduzido nos Estados Unidos da América de conduzir os mortos em automóvel passou a letra de forma, com notícia de caixa alta, acompanhada da pertinente nota irónica: "até os mortos acompanham o progresso das civilizações", que é como quem diz: o que os mortos têm na América, não têm os vivos em Castro Daire. Decorria o ano de 1909.