«NO MINÉRIO TRABALHAVA, TRABALHAVA, TODOS GANHAVAM, SÓ EU NÃO GANHAVA NADA»
O COMENTÁRIO feito ontem pelo conterrâneo SALVADOR relativo ao meu “post” com o título “ESGOTOU-SE O FILÃO”, referindo os últimos volframistas de Cujó que lá pelo ESPINHACELO esgravatavam a vida, nomeadamente o tio LAUREANO, o tio JOÃO CAMELITO, o tio ARTUR e os MADALENAS”, comentário a que eu respondi dizendo que também me lembrava deles, acrescentando que “no meu juízo, eram pessoas humildes, mas sérias”, faz-me voltar a eles por deles reter traços comportamentais dignos de nota, para a gente nova. Assim:
1 - O tio JOÃO CAMELITO foi o primeiro fogueteiro que conheci em Cujó. Em quaisquer das festas e romarias que na aldeia tinham e têm lugar, eram as suas mãos que faziam subir ao céu tudo o que era foguete e morteiro. E nós, descalços, leves que nem gatos, lá estávamos prontinhos a correr por caminhos, matos e a saltar muros de quintais, apanhar as canas. E o campeão era o que mais apanhasse.
Mas recordo este “quijôto” por outra razão talvez desconhecida pela maior parte da gente nova de Cujó. Ele não precisou que viesse a INTERNET, que viesse o GOOGLE para todos nós sabermos que a carne de cobra é “deliciosa e nutritiva”.
O jeito que ele tinha para agarrar as cobras mostrou-se quando se procedeu ao arranque da torga (dos tocos) no PENEDO DO CUCO para a Junta da Freguesia fazer carvão e com o dinheiro dele executar algumas obras públicas. Outros tempos, outros tempos! E a mexer as terras e as pedras, esses répteis eram quase tantos como os “tocos” das urgueiras.
Quem os ia apanhar? O tio JOÃO CAMELITO. E, para estranheza dos demais, ele levava-as para casa e dizia que as comia, depois de lhes decepar um palmo a partir da cabeça e outro a partir da cauda.
Homem atarracado, ia jurar que ele tinha um forte bigode. Um pioneiro, estranho, esquisito. Comer carne de cobra, homessa! Ali, em Cujó e toda a serra, só presunto, salpicão, chouriça, toucinho, ou naco de pão seco, côdeas de broa, rijas que nem corno. Fino, este nosso “quijôto”. Queria lá saber do que diziam, se as cobras lhe bem sabiam?
2 - O tio LAUREANO conheci eu muito bem. Meu vizinho de nascença, dele destaco a lembrança de, tal como os restantes volframistas (eu, pequeno, também fiz isso) vê-los de joelhos junto à gamela, debruçados sobre ela, mãos calejadas, dedos ágeis, a empurrar a terra para a cabeceira, onde deslizava lentamente uma película de água transparente, da espessura de papel celofane, por forma a levar a terra e deixar o minério preso, pelo peso, à tabua de base. Um sonho negro de todos aqueles que a ele se agarravam para ganhar o pão de cada dia, nesse tempo.
Mas, além da lembrança das mãos calejadas do tio LAUREANO, nunca esqueci a sua arte de CARDADOR. A última vez que o vi, em tal tarefa, foi na casa da tia CLEMENTINA, minha vizinha, mãe da Lurdes, da Isabel, da Ester, do Agostinho e do Zé.
Recorro à retina e à memória. No sobrado, um montão de lã emaranhada de um lado, do outro, um banco com uma malga de azeite e, no centro, ele, o ARTISTA, sentado num banco com dois pares de cardas, as ferramentas do ofício. Um par era para “escarduçar” (a primeira fase da tarefa) e outro para “cardar”. E “rap que rap”, ora vai ora vem, dentes para cá, dentes para lá, inversão de cardas e de mãos, de quando em vez metia os
dedos na malga e, fazendo deles hissope, polvilhava a lã para a tornar mais macia. E sei lá se o milagre de, terminada a operação, de entre o par de cardas sair uma porção de lã, com o tamanho das cardas e espessura de uma folha de papel que, assim direitinha, ele colocava numa pilha ao lado, a fazer lembrar uma torre. Não a TORRE DE PISA inclinada, que eu desconhecia. Mas uma torre aprumada, pedra sobre pedra, alinhadas horizontalmente com o nível de bolha e, na vertical, com fio de prumo.
E eu, observando o ARTISTA, admirava-me de ver ferramentas tão toscas, dentes de aço contrapostos, manejadas por mãos tão rudes e calejadas, produzirem folhas de lã com a leveza de penas de aves que eu via voar pelos montes. Coisas e imagens que não esquecem.
3 - O tio ARTUR, quanto a volframista “idem, idem, aspas”. Mas não esqueço que, no meu tempo de juventude, era o homem mais idoso que, na aldeia, sabia tocar GUITARRA PORTUGUESA. E mais uma vez os meus olhos e a minha atenção se perdiam em interrogações: como é que aqueles dedos calejados, encarquilhados da água, a empurrar a terra na gamela do minério, faziam trinar uma guitarra em dia de festa ou de baile? A esposa, cujo nome esqueci (o meu perdão) cantava o fado. E tinha uma voz de encanto.
O filho João fez a tropa comigo no R.I. 14 de Viseu. Eu fui para África. Ele foi não sei para onde. Nunca mais o vi. São as encruzilhadas da vida.
4 - Dos “MADALENAS”, lembro-me bem do tio MANUEL, com quem conversei muita vez na vila de Castro Daire. Um dia perguntei-lhe e ele explicou-me por que tinha a alcunha de FIDALGO. Manuel Fidalgo-
Éramos amigos e ele sempre que vinha a Castro Daire, procurava-me para termos “dois dedos de conversa”. Eu sempre aprendi com as pessoas mais idosas.
E, por aqui me fico, justificando a razão por que disse que o SALVADOR, comentando o meu post, tinha trazido uma EXCELENTE ACHEGA. Ora digam lá se trouxe o não?
As fotos das CARDAS fui buscá-las à Internet. O MUSEU MUNICIPAL DE CASTRO DAIRE não tem “coisas” destas. Como não tem, aliás, tantas outras que devia ter.