A PETISCADA -1
Nestas últimas, penúltimas e antepenúltimas crónicas cirandámos pelo último quartel do século XIX. Falei da poesia popular, de autor anónimo, métrica e rima descuidadas, temas vários por si tratados, nomeadamente o ano em que ele assentou praça (1871) ao serviço de D. Luís, como soldado. Claro que, poetando ele daquela maneira (a sua obra excluída estaria, seguramente, de entrar nos manuais escolares, ainda que escola fizesse no auditório português popular e nele perdurasse até hoje, como referi, sobretudo na zona alentejana) e ao situar-se neste ano de 1871, lembrei-me logo das «Conferências do Casino», de Antero de Quental, dos seus sonetos, textos sociais, de literatura pura, que ele cantou e a mim me encanta. Depois falei do tabelião (Antero, poeta e escritor de renome, outro escrivão anónimo de província) que, passada uma década (certamente filho da mesma escola coimbrã) assentou arraiais nesta vilória de Castro Daire, para daqui, no desempenho do seu ofício, viajar até aos Açores, dali para Tabuaço e, depois, retornar a esta santa terrinha.
Falei dos transportes da época, da mala-posta, dos tarecos pessoais que nenhum deles se dispensariam de levar consigo,em viagem, aludi às mudas de cavalos e ao vernáculo palavroso
próprio do cocheiro herdado por alguns taxistas atuais, seus sucessores no ofício, como bem foi "ouvisto" na televisão durante a manifestação que recentemente eles levaram a cabo, em Lisboa, contra a UBER.
Hoje volvo a esse tempo por três razões. Primeira: deixar aqui o busto de Santo Antero, exposto no Museu do Caramulo, cuja foto lhe tirei durante a visita que recentemente ali fiz na companhia da minha neta e do seu pai Nuro, meu filho. Segunda: deixar aqui alguns dos utensílios de que tanto Antero de Quental (escritor) como o tabelião António de Almeida (escrivão) se serviriam, a saber, o material de escrita (com a pena de pato já jubilada) e uma saboneteira, essa relíquia de porcelana que a indústria do nosso tempo remeteu para as vitrinas dos museus (ou ficou abandonada numa qualquer moradia antiga) colocando no mercado o sabão e sabonete líquidos.
A terceira razão é trazer a público uma nova décima saída da pena e tinteiro do anónimo poeta popular, em cujos versos nos deixou um registo daquilo que, nesse século XIX , se comia e bebia por este Portugal em fora. E o poeta não era de «má boca», não senhor! Desde «papa fina» ao «bacalhau frito» de tasca, embarcava tudo. Ora vejam:
MOTE
Gosto de carneiro assado
Gosto de couve flor
Gosto de queijo e pão
Gosto de vinho e licor
I
Gosto de passas e nozes
Gosto de uvas e maçãs
Gosto também de romãs
Gosto de boas iroses.
Gosto de bifes às dozes
Gosto de rim bem grelhado
Gosto de feijões guisados
Gosto de arroz com marisco
Gosto de um belo petisco
Gosto de carneiro assado.
II
Gosto de iscas com batatas
Gosto das mesmas sem elas
Gosto também de pielas
Gosto de conserva em lata.
Gosto de pasteis de nata
Gosto de bolos de amor
Gosto seja do que for
Gosto de abóbora menina
Gosto do que é papa fina
Gosto de couve flor.
III
Gosto de uvas ferrais
Gosto de amoras da horta
Gosto das belas marmotas
Gosto de arroz com pardais.
Gosto de peras verdeais
Gosto do bom mexilhão
Gosto do belo melão
Gosto também de repolhos
Gosto de comer com molhos
Gosto de queijo e de pão.
IV
Gosto de bom bacalhau
Gosto da bela salada
Gosto de carne estofada
Gosto do bom carapau.
Gosto de farinha de pau
Gosto de alho com ardor
Gosto, gosto, sim senhor
Gosto de bom peixe frito
Gosto do belo cabrito
Gosto de vinho e licor.