OLHAR, VER E OUVIR
Homero nos seus poemas Ilíada e Odisseia, tanto quanto a memória me diz, atento ao mundo rural que o rodeia, encontra nele poesia e expressões poéticas que, muitos séculos depois, os estudiosos latinistas, diferentemente dos helenistas, vieram a expurgar da obra, substituindo-as por outras que julgavam mais adequadas à nobreza dos homéricos poemas. Homero, conhecedor do meio camponês e das suas belezas poéticas caracterizou as suas figuras mitológicas femininas com «olhos de vaca», «olhos de coruja» e na mãe de Hefaístos (o coxo) «olhos de cadela», expressões que foram substituídas por «olhos brilhantes» e «olhos grandes» mais consentâneas com o pensar de quem muito sabia do campo das de letras, mas pouco do campo dos animais e da poesia contida nos olhos de uma vaca ou de uma cadela, no corpo da gente e dos animais de pelo ou alado, pois a poesia está em todo o lado.
E por assim entender é que não fiquei indiferente aquela gaivota que, cá nas costas do Indico, depois de planar, de subir e descer, sobre o salgado mar e no ar escrever mil poemas, veio pousar num candeeiro, na marginal de Lourenço Marques, junto de um coqueiro, onde, ao fim do dia eu espairecia, e sobre ele descarregar uma malcheirosa cagada. Assim:
Se uma qualquer gaivota
Sobre a luz faz a cagada
Não é poesia, não é nada
E um poeta logo nota
Que é só merda iluminada.
Do oriental Índico és tu
Ó gaivota descarada
No candeeiro pousada
Findo o voo, abres o cu
E ficas toda consolada
Haverá coisas mais poéticas
Do que da gaivota a cagada
Mas eu, lenhador das letras
No meio da natureza alada,
Cansado do ouvir o rouxinol
E outros maviosos gorjeios,
Por tantos escribas cantados
Exclui-os, por momentos, do meu rol
E abrindo caminhos a eito
Porque me apraz, dá gosto e jeito
Cansado de todos esses encantos
A ver merda por todos os cantos
Neste nosso mundo de humanos
Para não destoar desses tons e cores
Rebelde aos puritanos lenhadores
Dos passarinhos deixo a cantata
Para ouvir, quando me apetece e calha
Seguro de que ninguém me ralha
Os peidos que se escapam do ânus
Nos seus diversos sons e tons
Ora assobiados por apertado gargalo
Ou arrotados por alassado cu
Pim…pam…pu…pim…pam…pu…
É um alívio, um consolo, um regalo!
Abílio/LM/75