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quinta, 12 novembro 2020 16:25

CUJÓ “TERRA E GENTES”

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CAMINHOS ANDADOS

Milhares de quilómetros separam os progenitores dos filhos. Os primeiros a viverem longe do mar, na aldeia de Cujó, os segundos a respirarem a maresia do Índico, na cidade de Lourenço Marques. Os quilómetros de distância e os anos de ausência não diluíram os elos de afectos entre uns e outros. Passavam os anos, aumentava a saudade e era o tempo que a comunicação só se fazia por cartas. Os telemóveis e a parafernália de equipamentos que facilitassem a aproximação das gentes por vídeo-conferências e quejandos,  nem vistas, nem sonhadas. Eram milagres do porvir.

Então não havia nada disso, mas havia a GUERRA COLONIAL. E para as colónias partiam barcos e aviões abarrotados de militares, desde 1961. Iam defender a PÁTRIA, assim lhes diziam, recrutados nas bisonhas aldeias, arrancados dos campos, à agricultura e à pastorícia. Alguns deles às artes.

E, já depois do 25 de abril, dia histórico que pôs fim à guerra, ainda de Cujó partiu para Moçambique, Celestino Teixeira. Mobilizado, enfermeiro de especialidade,  iria de avião. Não era o único que da aldeia conhecera a África. Outros por lá tinham andado e ficado. Mortos. E nessas terras longínquas foi ele encontrar mais dois irmãos. O Moisés e o Martinho, prestes a retornarem à Pátria.

Sabida que foi, em Cujó, a mobilização do Celestino para Moçambique, os meus pais, sem a mínima ideia das distâncias que separam as cidades daquele território prestes a tornar-se independente, correream a casa dos seus pais e pediram-lhe para ele meter na sua bagagem uns salpicões destinados aos filhos que ali habitavam. 

Que sim, senhor. Salpicões metidos na bagagem e ala. A encomenda seria entregue. Só que as coisas não são tão simples, assim.  O avião foi aterrar na cidade da Beira, a mil quilómetros de Lourenço Maraurs. E o Celestino viu-se metido numa camisa de sete varas. 

Teve a sorte de encontrar os dois irmãos nessa cidade e pô-los ao corrente do RECADO. Certo. Nada de atrapalhações. Os salpicões chegariam ao destino, não em mão, mas pelo correio. Originários da mesma cepa,  foram-lhe ensinar onde era a estação dos CORREIOS e ele logo que pudesse que fosse ali despachá-los. E foi. E a encomenda chegou aos destinatários. 

Sim, senhores. Jovem, bem poderia desenvencilhar-se dos incómodos, fazer uma festarola com uns amigos, e ... "era uma vez uns salpicões". Mas não. Rapaz de palavra, honrando os valores aprendidos em família, não olhou a dificuldades e despesas para que o recado fosse cumprido.

É isso. Ele teve as dificuldades, as depesas e os incómodos que agora relato. E nós, os destinatários, tivemos o prazer de ferrar o dente naquelas peças de fumeiro feitas pela minha mãe e fumadas nos varões suspensos no caniço da cozinha dos meus pais, em Cujó.

Moral da história: dadas as bolandas daqueles salpicões, eles deixaram para toda a minha vida o sabor dos afectos paternos e o tempero da confiança e honradez que lhes impregnou o mensageiro, dando cumprimento do recado. 

Vejam o vídeo, cujo link anexo. E digam da vossa justiça.


 https://youtu.be/Z4d24UbS0qs


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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.