Trilhos Serranos

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segunda, 06 junho 2022 15:31

NÓS, A NATUREZA E O MUNDO

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NÓS, A NATUREZA E O MUNDO 

Para quem por aqui anda, vê uma casa, vê uma varanda e, por baixo dela um ninho, um casal de passarinhos e quatro ovos. Chocados pela mãe, cumprido o seu instinto natural, depois de alguns dias, saídas da casca, eis quatro crias …e isso lhes basta.

 

1-CASA2-NINHO-AComo se fossem meus netinhos acompanhei a gestação e criação deles, com emoção, desvelos e carinhos. E para ajudar os pais imprevidentes (sei lá se inexperientes, disso não estou bem certo!) até fui buscar tojos dos matos para dificultar o assalto dos gatos a rondar por perto, esses domésticos andarilhos, sempre dispostos a ferrar os dentes nos passarinhos, nos pais, nos ovos e filhos.

Atento a tudo isto, atento à poesia da vida, poema nunca escrito, nem visto, vejo que a métrica não está no verso, mas no gesto manifesto que dia a dia, escrevo, faço e registo do afã dos pais muito diligentes pela manhã, pela tarde, o dia inteiro, a satisfazerem os bicos da prole, ela que, sempre, faminta, tudo engole, bicos muito abertos, pescoço esticado, todos cantadores do fado, serenata coimbrã sem guitarrada, cantata à capela, orfeão paroquial, tuna académica improvisada, quarteto consagrado nos palcos do mundo a gritar pela LIBERDADE, senão mesmo quatro manos de um grupo coral rural a entoar o CANTE ALENTEJANO, património da HUMANIDADE.

4-TOJOSComo se fossem gente, falei com os pais e os filhos durante todo este tempo de gestação e criação, até onde levou o nosso entendimento, o carinho, o desvelo, a emoção, o soneto sem quadra nem terceto. Passarinho ganha pena e não há bem que não venha ao seu habitat circular de velha citânia , longe do bombardeamento que Putin faz na Ucrânia, arrasando aldeias, vilas e cidades, ao arrepio dos tempos e da escala civilizacional da humanidade.

Vi-os crescer, largar a penugem, ganhar asas e voar. Abandonaram o ninho, abandonaram o lar, voaram, abriram asa, deixaram vazia a sua casa e, por isso, mais vazia a minha casa ficou.

Seguiram, enfim o seu destino, os seus caminhos, libertos dos meus afetos e carinhos. Cumpriram-se as leis da natureza. Mas a sua estada ali, a sua permanência ali, a falta daqueles passarinhos ali, tal como se fossem meus netinhos, faz-me sentir a sua ausência, aqui.

CORO-3Restam-me os registos feitos. A poesia filmada da ninhada. Os pais satisfeitos, responsáveis e diligentes, a entrarem e a saírem. As crias a pipiricar insatisfeitas, pescoços esticados, boca aberta, famintas, os seus clamores, a lembrarem cantores de palco e de povo, tenores de salão, e nós, criadores, com alguma imaginação, eis-nos a colocar naqueles bicos abertos as árias, as canções e as modas que, neste mundo cão, nos dizem algo de profundo, de vivência e de história.

Por agora, ora vejam, ora escutem a voz telúrica da planície, a voz ondulante da terra e do mar, devagarinho, lentamente, deixem-se embalar e,  sintindo o que  eu sinto, por certo ouvirão sem igual, o hino dos passarinhos, ali, no seu ninho natal.

Link de vídeo

https://youtu.be/l-grYuCq8Rg



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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.