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quarta, 07 maio 2025 14:51

CORREIAS DAS VACAS - HERÁLDICA BOVINA

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CORREIAS DAS VACAS - HERÁLDICA BOVINA (3)

Desde tenra idade, tanto quanto me lembra, sempre me interpelei sobre a mecânica da “relojoaria cósmica”. E o meu pai, como deixei escrito no texto a que dei o título “Céu Estrelado”, publicado neste site, ali, em CUJÓ,  minha terra natal, sem energia elétrica por perto, noite de bréu, céu luminoso, “braço estendido, ele,o meu pai,  como se fosse dia, apontava  a abóbada celeste e ensinava-nos como localizar a ESTRELA DO NORTE

 

PRIMEIRA PARTE

CÉU ESTRELADOE  dizia: 

- “Aprendei meus filhos [eu aprendi, digo-o aqui] a ler o livro celeste. Ide pela estrada de Santiago [eu ia, aqui o digo]! Pois neste mundo terrestre de caminhos, atalhos e perigos, às vezes, sem saber como, em noites de escuro aziago nos perdemos. E saber lê-lo, não ignorar o Sete-Estrelo, ajuda-nos a encontrar o rumo.

E, se manhã cedo, antes do nascer do sol, íamos segar os fenos ou fieitos pela fresca, nos nossos lameiros e tapadas, o meu pai, sempre ele, apontando o luminoso ponto brilhante no céu e dizia:

IMG 8925- “Olhem ali a ESTRELA DA MANHÃ, a mesma que estrela que logo à noite, antes de todas as outras, rasgarem o manto azul do céu,  é a ESTRELA DA TARDE, inseparável companheira do Sol IMG 8926em redor deste mundo”.

Muitos anos depois de toda esta aprendizagem de escoteiro de aldeia, vieram os conhecimentos de Ptolomeu, Copérnico e Galileu, e, mais tarde ainda, durante a tarefa que levei a cabo visando a recolha da LITERATURA POPULAR ORAL, no concelho de Castro Verde, quando ali exercia a docência, um poeta popular supreendeu-me com o mote de uma décima - QUATRO VERSOS - que dava sentido às minhas observações de juventude sobre a “relojoaria cósmica”. Assim: 



«Desta mánica do mundo

Quem será o maniquista?

Onde começa o movimento

Não alcança a nossa vista.»



CAVAQUINHAPinheiro-transporteRespeitei a fonética das palavras “mánica” e “maniquista” com o propósito de deixar em letra redonda o exemplo do poeta-filósofo popular que, ignorando as normas gramaticais (como eu ignorava a astrologia ouvindo os ensinamentos do meu pai) deixou que o seu pensamento rasgasse o bréu das minhas interrogações de menino, tal qual uma estrela cadente rasca o firmamento.

Diz o povo sábio que “de velhinho se volta a menino” e, talvez por isso, para além dos ensinamentos do meu pai e de tudo o que li e aprendi nos livros, eis-me novamente a descer do Céu à Terra e a tentar descodificar a mensagem religiosa, estelar, mística  e cósmica impressa na HERÁLDICA BOVINA,  naquelas “rosáceas” “estrelas” e “fivelas” cravejadas nas correias  pendentes no pescoço desses animais, nossos eternos companheiros  de vida e de ganha pão, desde a Revolução Neolítica.

Para comodidade minha vou repescar para aqui alguns excertos do texto que escrevi e publiquei refletindo sobre esta temática, matéria que nunca vi refletida nos textos escritos pelos nossos maiores letras. 

Transcrevo:

correias-fojoFIVELAS-RAIADASOs lavradores serranos, sem letras bastantes, felizes e contentes eram com os ENFEITES visuais do gado que tinham e do timbre identificador daquilo que consideravam  seu, projetando naquele metal sonoro, polido e reluzente o “ego” de cada um deles, de cada família - pai, mãe e filhos - vaidosos das suas  identidades, das suas posses, seus teres, haveres e sensibilidade estética e religiosa. O dourado da talha barroca existente em todos os templos, nos altares-mores ou laterais, desde a Idade Média, deixava esses lugares sagrados, de silêncio e oração  e subia tilintante aos pagãos campos celtas, às serras e montes em redor” a confundir-se com a natureza.

(…)

O camponês herdeiro que  era de “usos, costumes e tradições”, exibia, sem sabê-lo, uma herança remota e ignota, qual brasão da família possidente, terratenente, ex-senhorio de terras aforadas por “três vidas”, foros assentes em escrituras lavradas nos cartórios de tabelião encartado. As mesmas terras que, no desenrolar da HISTÓRIA (…) passaram, por venda e compra em hasta pública, ou remissão dos foros, aos enfiteutas que se tornaram donos das propriedades que trabalhadas foram pelos seus avoengos. O resto eram burocracias esquecidas, remetidos para os arquivos nacionais ou distritais, só conhecidos dos historiadores

(…) Os símbolos metálicos, amarelos, religiosos e cósmicos davam cor e som às CORREIAS das vacas e do gado miúdo. Além de sinalizarem a sua localização entre matos, onde frequentemente se escondiam fugindo à picada do calor e do moscardo, rês que trouxesse ao pescoço uma campainha  com uma cruz fundida, não ferrava dente o lobo.  E o Mafarrico e as suas malfeitorias diabólicas, contra pessoas e animais,  não rondariam por perto. Longe andariam sempre todos predadores visíveis e invisíveis. 


SEGUNDA PARTE


Gente a trabalhar de SOL a SOL, o astro-rei  é o seu relógio. Aparece num ponto da linha do horizonte (o nascente) e desaparece no ponto oposto (o poente). E nesse seu curso milenar em torno da Terra, se disserem ao camponês que é o contrário - a Terra é que gira em torno do Sol - ele não acredita, sob pena de negar a evidência. O saber empírico sobrepõe-se ao saber científico. Ver e crer. Ninguém nega o que vê. Porém, todos creem no invisível. Está visto e demonstrado. A religião precedeu a ciência. Deus está em cada canto das moradas, nos picos da serra, nos baixios dos montes. As almas do purgatório pedem orações nos cruzeiros levantados em todas as encruzilhadas. Os espíritos malignos, tentadores, povoam o mundo. A mundividência paroquial secular, transmitida de geração em geração,  reflete-se nos procedimentos do quotidiano da vida, nos adornos icónicos das casas, na amassadura, fermentação e da cozedura do pão, nas refeições, ao deitar e levantar da cama, nas benzeduras, rezas  e adornos dos animais. 

De dia,  o SOL reina sobre a Terra. À noite, a LUA, na fase de LUA CHEIA, há-de mostrar, enquanto o mundo for mundo, aquela figura de homem com um molho de silvas às costas. Castigo de ele não ter cumprido os preceitos bíblicos. De ter pecado às escondidas. Por isso devia ser posto ali naquele pelourinho, naquele altar do mundo, à vista de toda a gente. Eternamente.

HOMEM NA LUANo firmamento, para além da LUA, desse pelourinho celeste, tudo o mais que brilha são ESTRELAS. E a Via Látea, a Estrada de Santiago, destaca-se das demais pela sua vastidão e amplitude luminosa. Os demais pontos com luz não têm conta. Uns são estrelas mais brilhantes e constantes, outros estrelas mais apagadas, inconstantes, aparecem, piscam e desaparecem. Postas naquele pano abobadado estão todas, aparentemente,  à mesma distância. A grandeza de cada uma está na luz que atrai o olhar “este bicho da terra tão pequeno”. Não há cometas nem meteoritos, pois até um meteorito é, para a generalidade do camponês, uma “estrela cadente”. E com essa designação passou para os livros da ciência. Mas a ciência anda por longe e a religião, cedo semeada em solo fértil, não ensina que tal fenómeno se deve à entrada desse corpo sólido na atmosfera terreste e, por atrito, se incendeia.

Sempre luminosa, ainda que invisível durante o dia, é a ESTRELA DA MANHÃ (Estrela de Alva) que, no céu, precede o acordar-do-sol. A mesma “ESTRELA” que, à noite, lhe aconchegou os lençóis ao deitar-se, e o acompanha luminosa durante o sono. Era a ESTRELA DA TARDE. E com essa designação entrou, também, nos livros da CIÊNCIA. Mas a ciência andava por longe e este ponto luminoso que integra a RELOJOARIA CÓSMICA, não é uma ESTRELA, é o planeta VENUS, o segundo entre os planetas que, em órbita própria,  giram em torno do Sol.

CRUZ E ESTRELA 5 - CópiaCRUZ-2O povo não sabe isso, nem precisa de sabê-lo. Precisa é de crer. E, de tanto ser ensinado, crê é que o “maniquista” invisível desta “mánica” do mundo, foi o criador de tudo o que  se vê e não vê. Um criador e um protetor. E, crendo nisso, a sua crença é extensiva à proteção dos animais, à semeadura, à colheita, ao quotidiano da sobrevivência. Tudo o que suceder em contrário é “obra do Demo”, tentações do “Demo”, males e maleitas do “Demo”. Por isso enfeita os animais com campainhas que, senão todas as cabeças da manada ou de rebanho, ao menos algumas tenham uma CRUZ visível, em relevo, saída do molde da fundição, como referi mais acima. Onde há CRUZ de campainha ou chocalho, fazendo- se ouvir de lés a lés, certo é que o dialho, o diabo “foje para longe a sete pés”. E o sol mais a estrela da manhã e a estrela da tarde, sem abandonarem a sua rota cósmica, descem do Céu à Terra e, com o brilho do metal reluzente, tomam assento, como enfeite, como símbolos de conhecimento e de crença, nas correias das vacas, mais as fivelas e brochado amarelo, sob a forma de estrelas ou flores de seis pétalas em substituição do hexagrama.  São elementos heráldicos que, alternam segundo o gosto e a criatividade do correeiro ou desejo antecipado do comprador/proprietário. Ora é o Sol que envolve a Estrela, ora é a Estrela que envolve o Sol. As fotos anexas são amplamente elucidativas, mesmo para os mais ignorantes, acomodados há herança do “costume”, da “tradição”, sem se importar com os porquês. Desses, para além de sabermos aue tratam da “sua vidinha” nada podemos esperar que ajude ao  conhecimento, compreensão e entendimento do mundo. 

Estudar a HERALDICA BOVINA e do gado miúdo leva-nos a associar tudo. E estranho é que alguns dos meus informantes atuais, fazendo uso desses elementos heráldicos, apenas pensem que é “por ser bonito”, por “vaidade humana” e/ou, simplesmente, para melhor se localizarem os animais, entre matos, quando escondidos ou perdidos.

IMG 20250330 155715CARVALHOTO SEIS - CópiaPor isso insisto. Esta matéria carece de estudo. É uma porta aberta para teses de mestrado, doutoramento e outros graus académicos. Da minha parte deixo os factos, a história, a tradição e as reflexões decorrentes de ser na SERRA DO MONTEMURO e arredores, onde, desse modo, mais se enfeita o gado bovino. Aqui, na serra-berço da VACA MONTEMURANA, de pequeno porte e de grande agilidade,  que, no século XVI, segundo Rui Fernandes, descia para as terras baixas da GANDARA, entre Aveiro e Coimbra, em transumância natural ou vigiada e  de lá retornava em tempo próprio. E lá desceriam de outras serras adjacentes, cruzando-se umas com as outras até chegarmos às atuais raças que se pretendem ser as primitivas. (Cf. Texto neste site sobre a VACA PAIVOTA).

Serra que, em grande parte,  foi senhorio dos MONIZES, ascendentes e descendentes de EGAS MONIZ, o AIO de AFONSO HENRIQUES. Serra que viu levantar do seu solo o Mosteiro da Ermida,  vertente sul e o Mosteiro de Cárquere,  vertente norte. E quem pode recusar o papel dos monges junto dos habitantes das terras que senhoreavam, não só relativamente à religião, mas também  a forma de melhor rentabilizarem a atividade agro-pastoril que contribuía para o seu sustento?

Não é preciso ser exegeta bíblico para descodificar o simbolismo celeste, astrológico, religioso e místico que rescendem dos elementos que dão som,  forma e cor à rústica e popular HERÁLDICA BOVINA, v.g. as campainhas com cruzes e as figuras do sol, de estrelas e mais brochado amarelo em torno das fivelas.  Basta, para tanto, ter presente alguns factos históricos e os procedimentos que refletem a cultura, usos, costumes e tradições que são identitários deste quinhão do território – GENTE, TERRA E ANIMAIS – que bebem as águas dos rios Douro e Paiva.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.