Trilhos Serranos

Está em... Início Crónicas OS CHINESES
sexta, 16 maio 2014 19:40

OS CHINESES

Escrito por 

No momento em que o Presidente da República e mais governação portuguesa se desloca à China, com os propósitos expressos de intercâmbios de interesses comuns, achei por bem transcrever para aqui um texto que, em 2003, publiquei no meu velho site e no "Notícias de Castro Daire". Assim:

"OS CHINESES EM CASTRO DAIRE

"Quatrocentos anos após os português Leonel de Sousa ter firmado com os chineses o primeiro tratado comercial visando a fixação de gente lusa na península do Kwangtung, a troco de 10% dos direitos comerciais, eis que a História dá a volta. Neste princípio do século XXI, os chineses descobrem a Europa, Portugal inteiro e, em fins de Julho de 2003, chegam também a Portugal.Estabelecidos na vila, chegaram 450 depois dos portugueses terem feito pela vida lá pelas terras do Oriente, incluindo as costas da china.

Os chineses, chegando, agora, em tempo de globalização, e praticando preços mais baixos que os comerciantes locais, gente bisonha em terra bisonha, os beneficiados são os consumidores e os prejudicados os comerciantes da terra. Os artigos «made in China», que, há muito, recheavam as «lojas dos 300», deixaram de ser produto exclusivo dessas estabelecimentos, e vai daí, «aqui d'el Rei» que os chinas aportaram com armas e bagagens.

Descrever o recheio destes «Bazares Chineses» é coisa desnecessária, difícil e mesmo impossível. Mas o que me leva a fazer este registo não são as muitas chinesices utilitárias e decorativas que os consumidores levam para as suas casas. É, sim, o significado histórico que decorre da chegada destes orientais ao ocidente, particularmente a Castro Daire, terra natal do jesuíta Sebastião Vieira, o padre que cerca de 450 anos antes, andara por Macau, território chinês. O padre que, não se ficando por lá, acabou martirizado no Japão por se ter infiltrado nesse país disfarçado de mercador. Dito resumidamente: tendo os jesuítas sido expulsos do Japão, em 1614, Sebastião Vieira, usando os meios ainda hoje muito em voga, subornou o barqueiro com «moedas de prata» q.b. e retornou ao país onde estava proibido de entrar. Difícil era o retorno, pois difícil era convencer os «armadores» chineses a transportarem nos seus barcos passageiros clandestinos. Eles conheciam o preço da transgressão. Mas o vil metal tudo vence. Sebastião Vieira e mais outros três missionários, apresentando «argumentos sonantes», conseguiram arranjar transporte. Com as precauções exigidas entram num barco. Os transportadores «taparam o escotilhão, puseram caixões em cima e, sobre estes, uns fardos de couros. Como eram quatro e o lugar muito estreito, começavam a abafar e a suar alguns suores de morte. Sebastião Vieira desmaiou. Um religioso de S. Domingos começou a chamar em altas vozes pelos chineses, a dar grandes punhadas no escotilhão. Um chinês que passava por cima acudiu, tirou os fardos de couro e os caixões, abriu o escotilhão e logo outros acudiram com luz e água para borrifar os religiosos. Tornaram assim à vida os que já se julgavam sem ela». (Mendes, 1984).

Quem é que, nestes nossos tempos, atendendo à diversidade dos media, ao eco e à imagem que deles recebemos diariamente sobre a emigração clandestina, não tem «ouvisto» semelhantes coisas? Porões e contentores abarrotados de gente ali metida por organizações criminosas a troco de fortunas? É. Não fosse a força corruptora do vil metal, não fosse a transacção corrupta do «metal sonante» a passar do alforge dos missionários para os alforges dos barqueiros, cumpridos que fossem os éditos de expulsão dos jesuítas assinadas pelos xoguns e a sorte deste castrense teria sido, seguramente, outra. Teria, mas ele não teria cumprido a ordem do Papa Urbano VIII que lhe disse quando o despachou para o Oriente: «Ide, que se lá padecerdes a morte, eu vos prometo declarar-vos por martyr da Igreja de Deos» (Gonçalves, 1984:281)

Mártir em nome de Deus. Mártires eu nome de Alá. Ontem e hoje. Ontem, uns. Hoje, outros. Uns e outros em todos os tempos. Todos, em nome da religião e da fé.

Nesse tempo era o tempo em que os portugueses se deslumbravam com as riquezas do Oriente. Fernão Mendes Pinto registaria esse deslumbramento na «Peregrinação», registo que ainda hoje deslumbra todos os peregrinos das letras e da cultura. Peregrinação a esse fim do mundo oriental que incluía Nobreza, Clero e Povo. As especiarias, a seda, os tecidos leves e garridos orientais nada tinham a ver com o pesado, negro e pré-histórico burel do ocidente, arrancado ao serro das ovelhas. Deslumbramento, religião e tráfico. Ao lado dos bens materiais traficavam-se os bens de alma. O bisalho de pedrarias cheirava a incenso e orações. A seda, a prata, as pedras preciosas e o ouro misturavam-se com espadas, canhões, pólvora, «terços», preces, orações, breviários e «bíblias». O cristianismo era o pendão sob o qual deviam ajoelhar-se os povos conquistados, fossem eles íncolas ribeirinhos ou sertanejos. Por acordo, ou à força de bombarda, o vinho e o crucifixo espalham-se por essas terras longínquas. E as marcas por lá ficaram, até hoje.

budaAgora é o invés. Os chineses chegaram. Estabeleceram-se por cá. Não consta que o tenham feito à força de canhão, nem que queiram missionar os gentios indígenas, apesar de no meio da quinquilharia que dá corpo a este «negócio da China» vermos a figura Buda (foto 1), a figura que os acompanha, tal como nos acompanhou a nós o Cristo CrucificadoCristo (foto2).

Mas que diferença, entre uns e outros, entre nós e eles, a começar pelos simbólicos companheiros:

a) Como símbolo da dor, do sacrifício e da tragédia humana, nós apresentamos Cristo pregado na Cruz: corpo esquelético, chagas a escorrer sangue, cabeça inclinada, apelo aos sentimentos de resignação, de dó e compaixão, desapego dos bens materiais.

b) Como símbolo de gozo, alegria, riqueza e sorte, eles apresentam Buda: corpo anafado, sentado, pançudo, pesado, a rir, boca rasgada, donde sai ininterruptamente uma estridente gargalhada.

É isso. Será que o Ocidente, há XX séculos a cultivar a «dor, o sofrimento e a resignação», neste novo embate com o Oriente, ainda terá capacidade para rir, para dar-se ares da sua graça, ou, bem pelo contrário, agora é que terá fortes motivos para chorar?

No século XXI, as Ásias, as Áfricas, as Américas, colonizadas e «civilizadas» pela velha Europa, parecem ter «descoberto», por via legal ou clandestina, o continente que, no século XVI, em tempo de «Descobrimentos», por via marítima e terrestre, lhes deu conta da sua existência e as colocou no Mapa-Múndi. Agora, cá estão elas, em carne e osso, com mercadorias e gentes.

A Terra gira mesmo em torno do Sol".

NOTA1: Este texto, publicado em 2003, foi lembrado no meu livro "Castro Daire, Igreja Matriz" dado à estampa em 2013, isto é, 10 anos após. E ali digo que o volume de imigrantes chineses para Portugal, incluindo os do PASSAPORTE DOURADO, poderá levar ao aparecimento de uma nova "Peregrinação", desta feita escrita por um chinês deslumbrado com as terras do Ocidente, tal como deslumbrados ficaram os europeus com esse livro de Fernão Mendes Pinto.

NOTA 2 - Posto que foi este texto no Facebook foi comentado por Paulo Cabaça Baptista, que me levou a fazer o seguinte acrescento, socorrendo-me do livro "A Formação da Europa Cristã" de Hugh Trevor-Roper, pp, 181-182:

"Nos anos de 1405-1433, Cheng-Ho, o eunuco da corte chinesa, um dos realmente grandes eunucos da história (o general Narses, de Justiniano, foi outro) chefiou ou enviou uma série de expedições navais que colocaram sob o domínio chinês todo o oceano Índico. Graças a esta empresa os governantes da Índia e de Ceilão e outros centros comerciais de Malaca e Calecut pagaram tributos ou enviaram as suas louças exóticas para a China. As armadas chinesas visitaram o Mar Vermelho e a costa oriental de África. Tornava-se apenas uma pequena continuidade para que as armadas chinesas pudessem ter chegado, meio século depois, a Lisboa e Londres. Nessa altura quem teria suposto que o reverso ia acontecer?"

 

Ler 1774 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.