Trilhos Serranos

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sexta, 23 janeiro 2015 13:35

CAÇA - O CHÓ

Escrito por 
1 - «Gosto da caça. Gosto do monte, da serra e do vale. Da Natureza. Deslumbro-me com os contrastes do relevo e das cores, da variedade de plantas e arbustos. Para mim, é como se atrás de cada urgueira ou giesta, atrás de cada penedo solitário, depositário de mil segredos, estivesse sempre não uma moura encantada, mas uma maga celta, uma virgem pronta a deixar de sê-lo, exalando o inebriante perfume do rosmaninho e do feno (...)

Em cada farrapo de nuvem fugidio a beijar as cristas das serras da Nave e do Montemuro, vejo a Fada Morigan a velar pela fecundidade do mundo vegetal e animal de que faço parte integrante, no qual me passeio e me divirto. A caça desperta em mim o instinto selvagem pré-histórico, aquilo que a civilização não apagou na minha relação com a terra e com os animais, o elo que me prende aos mais longínquos antepassados, aos ancestrais modos de sobrevivência e relação humanas» (Memórias Minhas». 2006, pp. 109)

2. - No sentido exato da palavra, a caça não era propriamente um desporto para os habitantes de Cujó, em tempos idos. Mais do que ocasião para passar o tempo e distrair, sem contudo deixar de ser também isso, a caça era essencialmente praticada como meio de aquisição de carne, complemento alimentar dos produtos agropecuários. As perdizes, lebres, coelhos e galinholas caçadas a tiro, chó, ratoeira e laço, substituíam e ajudavam a poupar o porco, dividido em retalhos dispersos pelas salgadeira e pelos varões do caniço: «foi por ser poupadinho, que a carne do meu porquinho me chegou ao entrudinho», como diz o rifão.

Às vezes a caça era também produto de venda, ou, então, seguia rumo a Castro Daire e Lamego para pagar algum favor prestado por oficial de diligências, oficial de secretaria do Tribunal, Câmara ou Finanças, por se ter prestado a fazer um inventário, um requerimento, a livrar o aldeão de subir a montanha de papéis, de se perder na floresta das letras e corredores das repartições públicas. Mas as peças de caça eram também peita, cunha de militar no ativo ou na reserva, membro de júri ou nele influente, onde se decide, ou não, da entrada nos quadros da Polícia, Guarda Republicana ou Guarda Fiscal do mancebo que resolveu trocar a capucha pela farda, os tamancos pelas botas. Há menos de meio século, não havia em Cujó, ou quase não havia, habitante que não possuísse um canhangulo de carregar pela boca, que não soubesse armar uma ratoeira num toiralho de coelho, pôr um laço num carreiro para uma lebre nele se autoestrangular, armar um chó à entrada de uma leira para apanhar vivas uma mancheia de perdizes. Arte aprendida, mais do que ensinada, praticada à revelia das autoridades venatórias que subiam à serra a verificar licenças, até as de moca, não deixavam os caçadores de levar por diante os seus intentos, bastando-lhes, para tanto, os apetrechos respetivos e «olho vivo e pé ligeiro». («Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva», 1993, pp. 171-173)

3 - Os dois textos precedentes foram por mim escritos e publicados nas obras citadas e datadas. Se os repesco para aqui agora é tão só porque um comparsa de caça, de seu nome Nuno Sebastião, a residir em Lisboa, praticante e estudioso das «artes venatórias», tendo-os lido nos meus livros disponíveis na Biblioteca Nacional, agradado com a minha escrita, como bom pisteiro e caçador, conseguiu localizar-me, contactar-me e pedir-me para escrever um livro dedicado exclusivamente a tais artes, livro onde descrevesse não só as peripécias e experiências por mim vividas, enquanto caçador,  mas também, se possível, enriquecesse o texto com desenhos ou fotos dos apetrechos tradicionais que, para além do uso das armas de fogo, ajudavam o homem a ferrar o dente numa peça montesinha de pelo ou de pena.

Sendo ele também conhecedor e colecionador de muitos desses artefactos, disse-me não ser despiciendo esclarecer melhor a armadilha designada por «chó», (mais eruditamente «ichó» no singular, e no plural «ichozes», ainda que Aquilino Robeiro escreva «chozes»), armadilha que eu refiro no meu texto sobre a CAÇA, em Cujó, e que eu próprio usei nos meus tempos de juventude e de caçador furtivo, já que tais armadilhas eram proibidas pelas autoridades venatórias. Disse-me conhecer somente a descrição e o desenho iconográfico que dele faz José Pinho, na obra «Ethonographia Amarantina», conhecimento acrescido dos buracos que, algures, viu descobertos por trabalhos arqueológicos. Que não viria nenhum mal ao mundo se eu deixasse também a descrição e desenho de tal armadilha.

Face ao seu desejo e empenho, direi, pois, que o «chó» (para continuar a usar a fala e a grafia de Cujó, concelho de Castro Daire) apesar da sua simplicidade, era um dos artefactos que mais me fascinava, enquanto produto da inteligência humana posta ao serviço na luta pela sobrevivência. Se calhar resultante dos mil trambolhões e alçapões por que a humanidade passou na caminhada da sua longa evolução hominídea.

Para quem nunca viu tal esparrela, mas está farto de ver filmes de cowboys, a melhor imagem que posso transmitir-lhe dela é compará-la às portas vai-e-vem dos salões americanos do faroeste, só que em tamanho miniatural e assentes em posição horizontal de forma a abrirem apenas para baixo, para um buraco, tal qual um alçapão, daí resultando que, feita que fosse a entrada, impossível era a saída. Era o que se podia dizer «queda sem tiro», expressão a contrariar aquela velha e relha muito usada entre caçadores de «tiro e queda», e bem assim, para justificar a analogia, semelhantemente ao tiro mortal do xerife que, entrando de rompante e a pontapé nesses salões de portas giratórias, em menos de um ai saca do revolver e, tiro e queda, manda para o galheiro o pistoleiro procurado.

E então como era isso da «queda sem tiro»? De que imaginação e manha se serviu o bicho homem para caçar outros bichos de pelo ou de pena, que Deus botou no mundo, nomeadamente uma mancheia de perdizes de uma só vez, sem andar a cansar as pernas a subir e a descer montes, a atravessar barrancos, a calcar matas e brenhas?

A coisa, apesar de simples, tinha os seus quês, como aliás todos inventos do bicho  homem que não caem do céu aos trambolhões, como os flocos de neve em tempo dela e em zonas frias da Terra. Vamos por alíneas:

a) A parte mais fácil da armadilha era um buraco aberto no chão, aproximadamente com um metro de fundura. Onde e como? Essas eras asChó-1-Redz primeiras perguntas que o «caçador furtivo» dirigia aos seus botões. Conhecedor dos terrenos que pisava, nado e criado neles a brincar e a guardar gado, ou a roçar matos para estrume ou lenha para a lareira, começava por matutar no assunto. A esparrela tinha de ser posta num local pouco frequentado por terceiros por forma a que só ele pudesse beneficiar do produto do seu engenho e trabalho. O que nem sempre acontecia, pois melhor do que um caçador furtivo, era outro caçador furtivo. Mas nada há na vida sem risco e o serrano, um dia a ser roubado e outro dia a roubar, tomando, embora, todas as precauções e sabedor de que na falperra-mundi cabem pobres como ricos, cada um buscando o objeto dos seus anseios ou necessidades, lá arriscava. Escolhia, de preferência, uma propriedade sua, uma leira de semeadura a beijar matagais, em zona de perdizes. Feita a  opção, começava primeiramente por preparar o terreno em redor, por forma a que todos os carreiros e trilhos existentes por perto confluíssem ali, disfarçados com giestas, fieitos, carquejas e outros arbustos. Tudo a imitar a natureza, pois ele sabe que, até o bichinho mais inofensivo da criação tem os seus instintos de defesa e de sobrevivência.

b) Depois, e durante algum tempo, procedia aos exames preliminares. Ia verificando se os carreiros estavam puídos, se tinha de pôr aqui e mais ali um fieito, mais além uma giesta, tapar o que fosse preciso e conveniente, tudo a afunilar naquele ponto. Parava e procurava no chão aqueles três risquinhos a unirem-se num só ponto como se fossem três pés de cerejas, três risquinhos em leque, tal é a impressão digital que as perdizes, deslocando-se a pé, deixam no cartório notarial da sua residência e vida. Visto isto dia após  dia, uma semana inteira, certificando-se por esses sinais de que era tão certo as perdizes irem ali diariamente esponjar-se ao sol depois de encherem o papo e despejarem os intestinos, semelhantemente a um cristão que religiosamente vai à missa aos domingos para encher-se de versículos bíblicos e despejar ali os seus pecados, testificado isso, dizia eu, tudo estava pronto e só faltava armar o «chó».

Chós-2c)  Consistia esta armadilha numa espécie de portas giratórias como acima ficou dito e agora, para melhor entendimento, comparo a uma janela com duas folhas, com os caixilhos laterais prolongados, à semelhança de uma padiola de 40 a 50cm de comprimento. As folhas, colocadas no interior dessa moldura, formavam uma autêntico alçapão e cada uma delas tinha por dobradiça um cordão feito de crina de cavalo ou rabo de vaca, material sempre disponível à mão do camponês, lavrador, pastor, tamanqueiro, ferreiro, caçador e o diabo a sete. Esses cordões, torcidos a preceito, tornavam-se uma espécie de mola que fazia retornar as portinholas à situação horizontal inicial, depois da presa ter sido engolida no buraco. Um pequeno batente impedia que elas abrissem para cima.

3  - Armadilha proibida, as suas pequenas dimensões facilitavam o seu transporte e ocultação debaixo de uma capucha ou banda de casaco. E era conveniente não a deixar escondida no monte, pois podia acontecer no dia seguinte estar lá apenas o sítio, na certeza tacitamente aceite, entre os habitantes da aldeia,  de que não haveria apresentação de queixa do roubo na regedoria local ou esquadra de polícia mais próximas.

A hora indicada para colocar o «chó» era à noitinha, ao escurecer, mas com luz bastante para a coisa ficar nos «trinques». O aldeão sabendo, por experiência e convívio, que as perdizes se alimentam à tardinha antes de recolherem aos altos penates onde pernoitavam, para no dia seguinte regressam cedinho ao celeiro do costume, certifica-se ser um dos últimos sobreviventes humanos a andar por ali e procede à montagem. Instalado o equipamento cobre-o com uma ligeira camada de terra a que sobrepõe, para melhor disfarce,  outra camada de folhas de arbustos. Mira, remira, dá uma olhadela em redor, benze-se e deixa o lugar com um «seja o que Deus quiser». Mas Deus, às vezes quer que outro habitante da aldeia seja mais madrugador e, em vez de perdizes, o dono, chegado mais tarde, só lá encontre as penas. Isso aconteceu à pessoa que está a escrever estas linhas, homem nado e criado na serra, aquele que, antes de se meter atrevidamente na arte das letras, se iniciou atrevidamente na arte da caça furtiva. 

Daí a razão desta descrição feita a pedido de um estudioso, amante e colecionador das artes venatórios, dos tempos atuais e de outrora.

Os  links que se seguem mostram como eu, a partir da experiência vivida em Cujó nos meus tempos de juventude,  recuperei artesanalmente esta peça arqueológica, deixando uma ideia do seu funcionamento, primeiro, e depois, com uns toques de arte, imaginação e criatividade, fiz dela uma peça decorativa da minha biblioteca. É só clicar.

1 -    http://youtu.be/hOmzcHu3gX4 

2 -  http://youtu.be/v3mshz8Nvl4?list=UU7F8Z0Zl7dH1As66bZKgmSg 


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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.