Trilhos Serranos

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sexta, 29 janeiro 2016 13:24

TEATRO - GIESTAS DO MONTEMURO

Escrito por 

 

Lino Menezes, um homem ligado ao teatro, actor e encenador que foi das «Giestas do Montemuro» tem vindo a publicar no seu mural do Facebook algumas fotos das peças que foram levadas a palco nos anos 90 do século XX.. Como eu assisti a algumas e escrevi sobre elas , aqui deixo cronica que publiquei, em 1993,  no «Notícias de Castro Daire».  As fotos que a ilustram foram extraídas do mural de Lino Menezes e creio não se relacionarem com o drama. Mas, «quem não tem cão, caça com gato». Nesse tempo não era qualquer bicho careta que andava por aí com câmara fotográfica integrada nos telemóveis a registar os eventos culturais da terra. A fotografia era feita com letras, em crónicas, como esta.

 


 DRAMA OCORRIDO EM LISBOA TRANSPORTADO PARA CASTRO DAIRE

Recém-nascido, abandonado num pequeno barco atracado nas margens do Tejo, embrulhado num pano às riscas, eis que uma alma caridosa recolhe aquele ser inocente desconhecedor, em absoluto, dos seus desumanos progenitores.
           Enjeitado, cedo se torna uma criança da rua e nas ruas de Alfama aprende a defender-se dos seus iguais que, como ele, de naifa sempre pronta a sair lesta do bolso, arrastavam a vida pelos becos e tavernas do sítio. Naquela vida, não raro presenciou e participou em todo o tipo de zaragatas. Por ter sido recolhido no dia de Santo António, António veio a ser o seu nome de batismo. Atirado para um barco mal acabou de nascer, num barco conheceu a vida das docas dos quatro cantos mundo, sempre animada por prostitutas, chulos e drogados. E foi por andar no mar que "Marinheiro" tomou por apelido.

GARRAFASUm dia, numa taverna de Alfama, aconteceu a tragédia que viria mudar-lhe o destino. Provocado sem mais nem menos, ripa da navalha e manda desta para melhor um homem que tinha idade para ser seu pai. Foi preso. No julgamento foi absolvido, mas durante o tempo de cadeia pensou no que fez e quando saiu da grelha logo voltou ao local do crime. Colado à porta da taverna passa dias e noites de olhos fitos na janela de uma casa que fica defronte. Era ali que morava a viúva do homem que matou, uma senhora trintona de muito boa aparência física. Ele queria mostrar-lhe o seu arrependimento. Tinha acuado em legítima defesa, pois até gostava do pobre homem. Tinha com ele convivido e sentia por ele uma estima inexplicável. Era como se o sangue da vítima, aquele sangue aveludado que lhe tingiu as mãos e lhe sujou a navalha, corresse nas suas próprias veias.          Na casa, onde a viúva coabitava com a sua mãe, também viúva, passou a viver-se um clima de angústia e de medo. Passou a viver-se um «drama de faca e alguidar» com todos os ingredientes que só as mulheres podem usar como tempero. Que pretenderia ele, ali colado à porta, aquele rapazinho tão novo e já com uma morte de homem às costas?
         A mãe e a filha, tendo por companhia uma vizinha, comentam o facto e fazem as mais díspares conjeturas e arrufos. «Vai-te embora, assassino, que queres tu de nós, malandro?!»

         O trinado de uma guitarra a acompanhar o fado vadio que a todo o momento entrava pela janela dentro sem pedir licença a ninguém, dá aso a que o trio feminino amaldiçoe as tavernas e os avinhados clientes que as frequentam. «O meu gasta ali o dinheiro todo. Farto-me de trabalhar para nada». «E o meu antes de ser morto o que fazia? Não saía dali... uma miséria!» Augurando fatalidades insondáveis a conversa era tingida de sangue e de tragédia. Se a renda da casa não fosse tão pequena, o melhor era sair dali.

         A viuva-mãe, que tinha sido muito estimada pelo genro, não  suportava o jovem assassino. Mais tolerante se mostrava a filha-viúva, cujos sentimentos pareciam balançar entre o medo e a compaixão, senão mesmo o perdão para aquele rapazinho que lhe matara o marido.

         Depois de muito tempo, o rapaz enche-se de coragem e bate-lhes à porta. Tinha de resolver o problema que lhe carregava a consciência. Cabisbaixo, envergonhado e tímido, António Marinheiro entra em casa e confessa o arrependimento. Tenta remediar o mal com algum dinheiro, mas não é bem sucedido. Ao contrário, ouve daquelas de bico amarelo saídas da boca da velha. A filha, entre receosa e tolerante, não sabe o que fazer. Duas forças opostas e inexplicáveis se combatem dentro de si. Não sabe que há-de perdoar-lhe, se há-de escorraçá-lo dali como se ele fosse um cão danado. Ele era tão novinho e tão parecido com ela. Nessa indefinição ele sai porta fora, vencido mas não convencido da razão que lhe assistia ao penitenciar-se junto das duas viúvas sofredoras de luto vestidas.

         Não abandonou a porta da taverna. Muitos olhares se travaram entre a filha-viúva e o rapazinho que viúva a fizera. Chega uma noite de Natal. E, ao contrário dos outros anos, a filha não quer acompanhar a mãe à missa do galo. Uma vizinha "pedinchona", sempre desavinda com o companheiro, daquelas que tem um filho de cada pai, entra em casa. Era uma visita que vinha mesmo a calhar. A viúva-mãe (quem é que engana uma mãe?) dá-se conta da tramoia e põe o fingimento da filha a nu. Chega-se à janela e chama para fora: "Ó senhor António, entre, entre, eu dou licença", e virando-se para a filha adverte-a para fazerem as coisas às claras. Para acabarem com a má língua das vizinhas, língua mais afiada e cortante que o fio da navalha que lhe roubara o genro.

         Assim se fez. António entra na casa da viúva e na viúva da casa. De assassino do marido passou a ser marido dela, e na situação de casados viverem felizes durante algum tempo.

         Mas o passado não perdoa. E, eis senão quando, uma mulher com aspeto de louca entra pela porta dentro aos gritos, anunciando mau presságio. Fala por enigmas. Nas mãos traz um pássaro preto que, apesar de morto, tem os olhos da cor do fogo. É o Almur, ave que, habitando ordinariamente nos mares da Grécia procura, morrer em terra, quando sente aproximar-se a hora da morte. A lenda associa-o a portador de desgraças que logo acontecem no lugar onde cai. Caiu perto... e perto rondava, pois, a tragédia.

         Um companheiro de António, como ele conhecedor do submundo da prostituição e da droga, conhecedor de velhas gaiteiras sempre perdidas por marujos sexies, cuja maquilhagem as torna autênticas drogarias ambulantes, regressa de viagem e faz-lhe uma visita. Traz-lhe algum dinheiro proveniente de antigos negócios ilícitos, mas negócios são negócios e na ética dos marginais também conta a palavra e a amizade. António não quer. Tinha mudado de vida e não queria causar desgostos à esposa. O amigo insiste. Traz ao decima a vida de marginais que levaram durante anos e acabam por se zangar um com o outro. A paz do lar estava quebrada. A lenda do Almur tinha sentido. Palavra puxa palavra e a viúva-mãe, que nunca gostara do novo genro, sabendo que a filha não era uma santa, que tinha também os seus pecados, resolve pôr tudo em pratos limpos. Incita a filha a dizer ao marido o que até ali lhe tinha encoberto. E a filha, tímida balbucia: "eu tinha apenas quinze anos...não sabia o que fazia".

         Algum suspense se respira na sala. E o facto era que ela tinha engravidado e parido um filho na flor da idade. Filho do qual se livrou com a ajuda da mãe por serem muito pobres e não poderem sustentar mais uma boca. Fora colocado num barco atracado nas margens do rio Tejo, embrulhado num pano às riscas e alguém, por caridade, o recolheu e criou, sem se saber mais do seu destino. Era o fim da picada. A criança que tinha sido encontrada num barco atracado no Tejo, embrulhada num pano às riscas, era ele. Criara-se em Alfama e, sem saber, matara o pai e casara com a própria mãe.

         Pois é, caro leitor. Se não sabia fica a saber. Já que leu até aqui, leia o resto. Eu não falo de um drama qualquer. Falo da tragédia do Rei Édipo trabalhada à maneira de Bernardo Santareno com o título "António Marinheiro", posta em palco, na Casa do Povo de Castro Daire, pelo grupo de Teatro "Giestas do Montemuro", com os papéis assim distribuídos:

PERSONAGENS               INTÉRPRETESGIESTAS

António Marinheiro            Lino Menezes

Amália                        Bela Menezes

Bernarda                      Filomena Oliveira

Rosa                          Angela Moita

Rui                           Helder Monteiro

A Louca                       Paula Rodrigues

Aninhas                       Lilia Menezes

Adolfo                        Jorge Ribeiro

                        V O Z E S

 Elsa Oliveira- Lúcia - Andrade - Carla Andrade - Dores Costa -Carlos Rodrigues - José Maria Rodrigues e Celso Ribeiro.

E foi assim, com estes intérpretes, que "Giestas do Montemuro", esse grupo de teatro amador deu uma luz diferente às noites de Castro Daire. Foi preciso coragem para pôr em palco um clássico do nosso teatro, ainda por cima uma peça inspirada no clássico teatro grego. É de louvar o esforço, a vontade, o trabalho do grupo, embora se reconheça que o resultado emocional não foi de todo em todo conseguido. As emoções fortes resultantes das situações dramáticas que a peça comporta, nem sempre tocaram o coração da assistência. Predisposta mais para a comédia do que para o drama, situações que dariam lugar ao choro, deram lugar ao riso.       Peça deslocada no tempo e no espaço, não seriam atores profissionais que colheriam aqui melhores resultados. O tempo dos dramas de "faca e alguidar", apelando ao "choradinho" já la vai. Os dramas mundiais - da fome, da guerra e de crianças abandonadas - que hoje entram diariamente em todas as nossas casas, através da televisão, endureceram os corações das gentes. Eurípedes, Sófocles, Santarenos e tantos outros autores dramáticos não são a melhor aposta teatral para os tempos que correm. A "cantiga do ceguinho" que, nas feiras e romarias, tanto comovia os feirantes e romeiros em tempos idos,  desapareceu de vez. É preciso estar atento aos sinais de mudança. Não podem exumar-se os tempos em que a dor se alimentava com a dor. O povo  habituado a rir e chorar sem pão nem cultura, só com cultura e pão pode chorar e rir com acerto. Rir por tudo e por nada e sem justificada razão, é não levar nada a sério.

         A sério levou o grupo "Giestas do Montemuro" a peça de Santareno. Levasse ele também em conta a mudança dos tempos e das vontades e outro galo cantaria.

         De qualquer forma, e tirante esses "senãos", aqui deixo a esse jovem Grupo de Teatro os meus aplausos públicos pela noite cultural diferente que proporcionou a mim e a todos os que ali acorreram enfastiados de telenovelas ao pequeno almoço, ao almoço, à merenda, ao jantar e à ceia.

CHIÇA!!!

Castro Daire 08-02-1993

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.