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quinta, 12 maio 2016 19:03

CUJÓ - VETERINÁRIO DOMÉSTICO

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VETERINÁRIA

Não se pense que o nosso "veterinário doméstico", ( o senhor Esteves, se a memória me não atraiçoa)  como referi no apontamento anterior, tratava os animais às cegas.

.As gentes das aldeias podiam ser analfabetas totais, semianalfabetas ou lidar apenas com letras grossas, antes de lá chegar a escola oficial. Mas não eram estúpidas, nem burras. E algumas delas especializavam-se, tornavam-se "entendidas" em certos ramos de saber, com vista a poderem ajudar os vizinhos que dos seus serviços necessitassem. E não faltam notícias da existência nas nossas aldeias dos "endireitas", das "benzedeiras", das mulheres "bentas", das «bruxas» e por aí fora. No meu tempo eram muito badaladas a "benta das Dormas", povoação ao lado de Pretarouca, onde hoje existe uma grande barragem hidroelétrica, e a "benta de Teixelo", povoação para lá de Almofala, a descer para Tarouca.

digitalizar0330 - CópiaSer camponês não é, pois,  sinónimo de pacóvio, de inábil. E criança nascida na serra era, como toda a gente, dotada de inteligência e meios de defesa contra as forças adversas à sua sobrevivência. E foi foi graças a toda esta gente serrana que Portugal cresceu e se fez o país que somos, mesmo que os povoadores enfiteutas vissem os seus rendimentos esvaírem-se em foros para os celeiros distantes dos senhorios, mosteiros, conventos e casas fidalgas. E Cujó era terra de foros e de prazos. Estão documentados os prazos ao Mosteiro da Ermida, ao Mosteiro das Chagas de Lamego (ver foto ao lado)  e ao Mosteiro de Tourães, arredores da Régua, hoje Casa de Turismo rural.

Somando saber de experiência feito, adquirido de geração em geração, o camponês se entendia que esse saber empírico lhe não bastava, não rejeitava o saber científico que até ele chegasse, através das instituições ou dos especialistas na matéria.

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No que respeita aos animais é sabido que o homem do campo tinha neles os seus companheiros de trabalho, do granjeio do pão e tratava-os o melhor que sabia e podia. Não tenho em memória o nome de qualquer lavrador que tratasse mal os seus animais e que a eles não estendesse os afetos que dedicava aos restantes membros de família. Muitas vezes até nos enfeites. E se, por falta de posses,  não podia pendurar no pescoço da esposa ou da filha um colar de pérolas, ía á feira do Fojo, ou qualquer outra, comprava uma coleira de campainhas e punha-a no pescoço das vacas. Coleira enfeitada com fivelas reluzentes de metal e brochas desenhando estrelas ou outros símbolos esotéricos. (ver foto)


Por isso, nesse tipo de ralação, terra, gente, animais, sempre que podia, botava mãos às informações disponibilizadas pelos organismos oficiais ou pelos especialistas em matéria de veterinária, mesmo que com recurso aos elementos naturais de que se rodeava para fazerem a mistela necessária ao tratamento. O saber não ocupava lugar.

Dos papeis velhos que o meu irmão António de Carvalho (usando o mesmo conceito de Zeferino Gonçalves, já referido em crónica anterior: «a tenda quer-se na mão de quem a entenda») me fez  chegar às mãos, há muito tempo, encontrados na casa do seu sogro, David Duarte Pereirinha, como já referi numa crónica longínqua (escrita ainda no velho site, com o título "Cujó - Retalhos de História"), faz parte um pequeno caderno cosido com fio-norte e nele constam algumas receitas para tratar o gado bovino.

Nele posso ler que foi "trasladado do folheto que veio do Governo, no dia 12 de julho de 1881, em Cujó", por Francisco Pereira de Morais e Silva, solteiro, emanado que tinha sido da "Intendência Pecuária do distrito de Viseu",  em 19 de Março do mesmo ano, com a assinatura do "Intendente da Pecuária, António Augusto dos Santos". Ora vejam-se os seguintes respigos, postos em ortografia hoje vigente:

Caderno Veterinária-Redz"A maior limpeza dos currais pela renovação a miúdo das camas que serão conservadas enxutas.

Alimentação do gado por meio das palhas ou erva estremes ou misturadas ou preferindo, toda a via, regímen verde ao seco e evitando que o alimento por si ou por algum corpo estranho possa ferir a boca.
Enquanto reinar a maleita zaragatoas de agua melada cortada por um pouco de vinagre uns dias por outros e os mesmos animais sãos cujos presuntos
serão diariamente muito bem limpos banhados com água fria.
O tratamento da doença devera consistir no seguinte: aqueles mesmos agratões ou zaragatoas ou as de cozimento de cevada adoçada com mel
ligeiramente acidulada pelo ácido clorídrico duas ou três vezes por dia logo que se conheça o mal. Depois de abertas as empolas as zaragatoas ou lavagens a boca deverão antes ser feitas com cozimento de casca  de carvalho a que se juntará ou não algumas gotas daquele ácido.

Os presuntos, se neles também se declarou a moléstia serão duas vezes por dia cuidadosamente limpos e abundantemente banhados com água fria limpeza  banhados que continuarão em todo o curso da doença e que não obstam a que as ulcerações dos mesmos presuntos sejam também lavados com cozimento de casca de carvalho ou tocadas com tintura fénica por meio das barbas de uma pena ou cobertas com unguento a fim de abreviar a sua cicatrização".

Na folha 114 temos a seguinte purga:

"Uma  onça de raiz de galopa feita em pós. E pós de cominho 4 oitavas e se infundirá em meia canada de vinho branco por um espaço de três horas e despois se dá à rês".

OUTRA PURGA

«Toma-se uma onça de folhas de sena e duas oitavas de gingiva e seis oitavas de espécies e tudo se pise grosseiramente e botem de infusãoem meia canada de água de folhas de burragens e de língua de vaca e despois se dá à rês»

OUTRA PURGA

«Purga para purgar os bezerros de 2 e de 3 meses
Tumendo de salmoura, 40 reis desta porção se deve dar à rês conforme a idade que tiver, isto deve deitar-se-lhe em leite muleiço conforme sai dos tetos e depois não mamará sem que passem 2 horas o mesmo se fará às reses grandes, mas se lhe dará em dobro do que se dá às criaturas humanas".


Na parte final que restou do caderninho, com letra diferente, digamos que mais primária e insegura que a anterior,  temos uma receita para os "curar os temores depois deles deitarem".

Assim:

"Para curar os tumores depois deles deitarem:

De casca de carvalho uma mancheia e de folhas de nogueira uma mancheia tudo bem cozido seco e se deite dentro do temor com seringa".

Nestas receitas e noutras do caderninho encontramos a "casca de carvalho" a incorporar o "medicamento", portanto, uma árvore, com poderes de cura. E essa qualidade faz com que eu me orgulhe um pouco mais do apelido que me foi legado pelo meu pai: CARVALHO, apelido que é preciso ter cuidado a escrever e pronunciar. O amigo leitor já reparou no resultado de ele ser escrito ou pronunciado sem o V? É para onde me apetece mandar aqueles "amigos" que me dão palmadinhas nas costas, mas ansiosos estão de me verem longe por causa daquilo que digo, faço e escrevo.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.