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sexta, 26 agosto 2016 12:23

CARTA ABERTA AO DR. CÉSAR DA COSTA SANTOS, EX-PRESIDENTE DA CÂMARA DE CASTRO DAIRE

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Veja só, passados todos estes anos (estamos em 2016 e pergunto, há quanto tempo não nos vemos?) cá estou eu a dirigir-me a si em "carta aberta" publicada nesta minha página que, há tantos anos , mantenho aberta na web.

Por quê só agora? Eu lhe explico: não é  para dirimir-me do pecado de nunca lhe ter agradecido a amável e inteligente dedicatória que lavrou na testada do livro que teve a gentileza de me oferecer, mas para agradecer-lhe, isso sim, algumas informações históricas que nesse livro deixou sobre o concelho que administrou durante vários mandatos que exerceu como Presidente da Câmara.

César -livro

E porquê só agora? Repito a pergunta. Tão somente  porque um irmão meu, sabendo-me dedicado à investigação da história local, me perguntou em que ano chegou a «energia elétrica a Cujó?». Respondi-lhe que não sabia e que não tinha feito qualquer registo sobre isso, tanto mais que, nessa altura, eu andaria ainda lá pelo Alentejo, por terras de Castro Verde, onde fui colocado como professor na condição de "retornado", bem longe de Castro Daire.  

Mas que sossegasse. Eu possuía em casa a «AUTOBIOGRAFIA» do então Presidente da Câmara, Dr. César da Costa Santos,  editada em 2006 e, seguramente, sendo isso um assunto de relevância político-histórica-social e económica em benefício das populações, ele por certo, não deixaria de referi-lo nas páginas escritas que resolveu deixar para a posteridade em forma de livro.

Ora, passando eu, mais tarde,  a exercer a minha profissão em Castro Daire, forçoso era que viesse a conhecer o Presidente da Câmara. Cruzámo-nos muitas vezes, algumas delas nos sentámos à mesma mesa no CAFÉ AVENIDA, tivemos conversas políticas e culturais pertinentes em privado, concordámos e discordámos um do outro, fizemos incidir sobre nós olhares suspeitos, chegando até, quer na Rádio Limite, quer na imprensa escrita a trocar  algumas picardias que, como é próprio de pessoas  civilizadas e educadas, nunca ultrapassaram as linhas da decência e da docência. Nunca lhe pedi um favor. Nunca precisei, nem é do meu feitio pedir favores. Mas, agora que preciso, agora que há muito ele deixou de ser o «manda chuva» político cá da terra, agora que, por dever de ofício, devo informar o meu irmão sobre o assunto de tanta relevância histórica, um evento ocorrido no seu tempo e com o carimbo da sua gestão autárquica, não me acanho e, folheando o seu livro, não me foi difícil obter a resposta desejada e pronta. Um grande favor, amigo, um grande favor. Assim, sem esforço, sem respirar o pó dos arquivos, nem imagina o quanto lhe estou grato pela informação.

Com efeito, na página 152, lá está a referência à «INAUGURAÇÃO DA LUZ ELÉCTRICA EM ALDEIAS DO CONCELHO - 29/11/81»

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Ora eu, que nasci e cresci em Cujó, à luz da candeia, como já tantas vezes o referi em crónicas várias, não foi sem profunda emoção que,  a tantos anos de distância, ouvi o Presidente da Câmara dizer, ufano, com a eloquência que lhe era própria:

«No plano de atividades da Câmara Municipal, para o ano de 1981, define-se como prioridade das prioridades a eletrificação total do concelho (...) Volvido um ano apenas, vemos já claramente o fim do túnel negro da escuridão (...) Com a eletricidade, bem mais do que a substituição das nossas típicas candeias de petróleo por lâmpadas de maior ou menor potência e armações mais ou menos decorativas, ficam criadas as infraestruturas para a montagem e funcionamento de fábricas, para a transformação da agricultura artesanal e medieval numa agricultura mecanizada e rentável; para o incremento do comércio local e expansão da rede comercial, para um melhor aproveitamento dos tempos livres, para um mais eficaz ensino, uma instrução pedagógica e didaticamente mais consertada e o incentivo a uma cultura mais lúcida (...) Com estas palavras mais não queremos do que marcar a importâncias das inaugurações que se vão seguir e que, em poucas horas, dão a cerca de 2.500 pessoas residentes aquilo a que, há muitos anos, tinham direito".

Mais do que registo de interesse político, temos aqui uma informação de relevante valia histórica. A tantos anos de distância, repito eu,  a lucidez do então Presidente da Câmara, de mistura, por certo, com a emoção decorrente do próprio evento que a si se devia, fica seguramente aquém da emoção deste cidadão natural de Cujó que, fazendo vida longe da terra natal, não pode assistir ao milagre do «fiat lux» na sua aldeia, mas, ao ler o texto, foi como se estivesse presente. Lá isso foi. É que, por força da memória, nunca me esqueci de que, adormecido o astro-rei, terminados os serões cobertos de breu,  apagadas as candeias, só a luz da Lua e das estrelas alumiavam a terra,  noites adiante, não raramente prolongadas com o lampião na mão a caminho da rega de um milheiral ou cuidar do andamento de um moinho que, rodando, rodando, convertia em farinha o cereal e, desacompanhado, podia pejar, coisa que, se aprendia a a evitar, de pequenino.

Acompanhei os bons e os menos bons momentos que o Dr. César viveu no concelho de Castro Daire. Como autarca, cabeça de uma equipa, fez seguramente coisas que não têm, nem nunca tiveram a minha aprovação, mas é indiscutível que o concelho muito lhe deve. E esta sua AUTOBIOGRAFIA acaba por ser a radiografia das terras que recebeu e das terras que legou. O «antes» e o «depois». O historiador agradece as informações nela deixadas. Poupa-lhe muito trabalho. Ele é a rede viária. Ele é a rede elétrica. Ele é o saneamento básico. Ele é estado do ensino e saúde. Há quem se apegue ao passado com saudade. Quem tenda a esquecer como era e se recuse a contar tal qual foi. Mas para lembrá-lo, em cotejo com outras fontes e documentos, é que existem livros como este, fruto de vivências pessoais e de lutas travadas na investigação, na política, no ensino e na justiça.

E acredite, Dr. César da Costa Santos, que se me emocionei ao ler o texto onde refere a chegada da luz elétrica a Cujó, à minha terra natal, não fiquei insensível aquela sua deambulação solitária pelas ruas de Viseu, em fins de carreira política: «não via as montras, nem as poucas pessoas que, aquela hora, passavam» e, chorando, «agradecia a Deus por já ter chamado a si» os seus pais (pp. 378), bem como outras páginas de igual teor escritas com tintas de dor e de angústia. Todas  aquelas que, por moto próprio, o professor, o diretor escolar, o político eleito vários mandatos, venerado e respeitado, se apeia do pódio das honrarias para, desacreditado da justiça, corajosamente se despir de vernizes e preconceitos, mostrando-se humanamente nu ao mundo, tal qual nasceu.

Não sou crente, mas creia que esta referência aos seus pais, num momento de amargura e desilusão, mais do que todas as outras, me tocaram bem no fundo. É que, filho que se preza, tudo deve fazer, na vida, para honra e alegria dos seus progenitores. Pus-me no seu lugar e creio que, em iguais circunstâncias,  não pensaria, nem diria de forma diferente. Também eu, ainda que por razões diferentes, também já muitas vezes me senti solitário, chorando,  entre as gentes. 

Assisti ao seu julgamento. Sentado na «plateia» vi e ouvi o tom dos interrogatórios a que foi sujeito e face a eles me interpelei, na altura, onde estava a sua eloquência habitual. Explica agora a sua postura titubeante. E tendo eu «ouvisto» tudo isso, atento à forma e ao conteúdo, com destaque por si sublinhados, agora, quando se refere aos intuitos e objetivos do Meritíssimo Juiz e do Dr. João Oliveira, não me foi difícil viajar para Moçambique e, no Tribunal Judicial de Lourenço Marques, assistir a outro julgamento e à diferente postura do juiz e da ré. Foi aquele caso que inspirou o meu livro com o título «JULGAMENTO», publicado em outubro de 2000 (esgotado)  e também o texto que publiquei, há anos, no meu site com o título «O JUIZ QUE SE CANSOU DE SÊ-LO», texto que, sem receio de cair no ridículo, entendo oportuno colar a esta carta aberta, qual peça processual destinada aos arquivos do TRIBUNAL DO TEMPO. O Dr. César melhor apreciará desta minha opção. Assim:

 

 

César-leis - Cópia«1 - JULGAMENTO

Lá no outro hemisfério, mais propriamente na cidade de Lourenço Marques (que Maputo era e Maputo voltou a sê-lo, coisas da História!) o diretor de um estabelecimento de ensino particular foi assassinado pela sua própria esposa.

Sentado à secretária, a mulher, que trabalhava no mesmo estabelecimento, entrou escritório dentro e nem deu tempo ao consorte de lhe perguntar por que razões queria ela tirar as balas empilhadas no carregador do revólver e alojá-las no seu peito, dando-lhe reforma antecipada.

Tombou morto, naquele instante. As autoridades policiais e judiciais tomaram conta da ocorrência, a mulher foi detida e interrogada, os autos avolumaram-se com  papel bastante no apuramento da verdade e chegou-se ao dia do julgamento, que se desdobrou por várias sessões. Numa delas, por razões justificadas, um dos elementos do tribunal teve de ausentar-se e o juiz,  para não interromper a sessão, chamou um cidadão da assistência para ocupar o lugar vago, ficando,  assim, o "tribunal" em condições formais de prosseguir os trabalhos.

A partir daí  foi para mim claro (eu estive presente em todas as audiências) que  a defesa do falecido ficou prejudicada, pois as testemunhas arroladas a favor da ré não eram confrontadas com perguntas da parte contrária. O elemento substituto não tugia nem mugia. Semelhantemente a ele só alguns advogados nomeados "defensores oficiosos" que por aí proliferam hoje nos nossos tribunais que, a expensas do Zé Pagante,  assistem ao desenrolar dos trabalhos  e, no fim de tudo, levantam-se muito solenemente, ajustam a toga aos ombros  e, muito circunspectos, " pedem justiça". 

Acabado o julgamento a ré foi condenada a uns tantos anos de prisão e o juiz partiu para outra. Lá, como cá, os processos cobriam-se de pó nas prateleiras e arrastavam-se anos nos tribunais, alguns com a conivência dos escrivães que, na pilha deles, tinham o zelo de a uns sobreporem outros conforme o interesse manifestado por uma ou pelas duas partes. Na minha aldeia cedo aprendi, com os mais idosos, que havia "muita maneira de matar pulgas". E a morosidade da justiça, crónica em Portugal, deve-se, em muitos casos, à subtil teia em que os seus tecelões a enredam. 

2 - A FORÇA DA CONSCIÊNCIA

O juiz era uma figura a atirar fisicamente  para o asiático. Baixinho, magrinho, rosto ornamentado à Ho Chi Min, vim a encontrá-lo um dia sentado à mesa de um café que ficava no mesmo edifício onde funcionavam, na altura, antes da construção do "Campus Universitário", as faculdades de Letras e de Ciências. Apresentei-me como professor do estabelecimento de ensino cujo diretor fora assassinado pela senhora que ele mandara para a cadeia, havia pouco tempo. Que sim, senhor. Bem se lembrava. Ele estava a preencher uns impressos de matrícula e eu perguntei-lhe se era algum filho seu que ia entrar na universidade. Que não. Era ele próprio que estava a matricular-se em Veterinária. O quê? Que me diz, Meritíssimo Juiz? É isso mesmo, cansei-me de lavrar sentenças contra as minhas convicções por força da matéria lançada nos autos. Ordenam-me os códigos que assim proceda e decida, mesmo ciente de que o juízo proferido assenta num chorrilho de mentiras. Vou formar-me em Veterinária, lidar com animais, dar-me com eles e viver em paz comigo mesmo, com a minha consciência.

Fiquei sem palavras, mas ciente de que, antes de morrer, num qualquer canto do planeta, eu poria em letra de forma a minha simpatia por este seu gesto, por esta sua atitude de  humanidade, franqueza e humildade.

O 25 de Abril e a consequente descolonização levaram a que pessoas amigas e/ou conhecidas que  frequentemente se encontravam nos cafés «Scala» e «Continental»,  naquela axadrezada cidade do Índico, deixassem de fazê-lo. Nunca mais vi esse cidadão. Mas,  face a esta novo espaço W.W.W. que também serve para encontrar pessoas que se perderam nos trilhos da vida, admitindo que ele tenha completado o novo curso e não excluindo a hipótese dele poder vir ler este texto, eu, rural assumido, que nasci e cresci no campo ligado à natureza e aos animais, que vi um veterinário salvar uma vaca do meu pai, a vaca "Roxa"*, dada como morta por causa de uma mamite depois de ter parido, é com todo o prazer, interesse e simpatia que lhe pergunto:

- Como vai o gado, Senhor Doutor

E, com isto,  Dr. César, com a consideração e o respeito de sempre e com os seus e os meus pais em lembrança, todos eles desfeitos em pó e nós, por imperativo da natureza, não longe se sermos reduzidos ao mesmo, me despeço, esperando que, entretanto, tenha muita saúde e o viver que para mim desejo.

Abílio/agosto/2016.
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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.