Trilhos Serranos

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domingo, 04 dezembro 2016 18:41

ESTRADA NACIONAL Nº 2 (DÉCIMO PRIMEIRO APONTAMENTO)

Escrito por 

A ECONOMIA, OS AFECTOS, AS PESSOAS E OS POVOS

Nesta saga que me propus a rodar no asfalto da ESTRADA NACIONAL N. 2, integro hoje a minha última viagem a Lisboa, em carro próprio. 

1- Lisboa - REDZNão. Não fui no rodinhas, no baixinho, nem fui pela via rodoviária de que tenho vindo a falar. Rodei sobre a A24 de Castro Daire  até  Viseu, apanhei a IP3 (aquela miséria de estrada que é um belo espelho dos nossos políticos e engenheiros) e no primeiro desvio entrei na A1, onde rodei até sair para a A8. E, desvio após desvio, rotunda após rotunda,  portagem ...pip...após  portagem... pip...  (sentinela da via verde fixado no para-brisas) cheguei a Santo António dos Cavaleiros. Aí, cansado de cavalgar sobre o asfalto, metidos os cavalos entre os varais desenhados no chão à beira do passeio, fiquei com a impressão de que eles, os cavalos, se pudessem  coucear, davam imediatamente um par de couces à vida urbana e, sem hesitação, viravam o rabo à confusão e  rompiam a galope para o campo, para a serra, retornando ao sossegado e arejado sítio da proveniência.

Passei uns dias com os filhos, noras, netos e demais família. As habitações de Lisboa e arrabaldes (como em todas as urbes do mundo) são autênticas colmeias humanas, habitações sobrepostas, favos sobre favos, favos ao lado de favos, todos eles a ouvirem o zumbido e a labuta das abelhas vizinhas, sem apelo nem agravo. As ruas, vielas e entroncamentos, são formigueiros de peões e de veículos que se cruzam, que se empurram e riscam propositadamente ou por acidente, ficando disso marcas físicas na chapa e psicológicas nos proprietários.  E evitando-se o choque e o risco nos veículos, nem por isso deixam de chocar-se e  riscar-se mutuamente os condutores, trocando piropos em linguagem crispada e agressiva, reflexo da vida estressante própria de meios assim. E fecho os olhos às galerias subterrâneos do Metro,  milhares de passageiros apinhados lá dentro, à entrada e saída. Roubados, uns, carteiristas outros. Horas de ponta sem ponta por onde se lhe pegue. Tudo aquilo é o oposto da  DESERTIFICAÇÃO do interior do país, do sossego serrano, o resultado das políticas  centralizadoras  praticadas durante séculos. Lisboa vai morrer asfixiada naturalmente, se não for a natureza a dar-lhe um fim antecipado. São os imperativos da política e das opções da vida. E, enfim, quem não se sacrifica, quem não se acomoda às mais difíceis condições para ganhá-la onde quer que seja, se não houver alternativa e a isso obrigarem os deveres de profissão?

1B- Mosteiro a - REDZNado e criado no campo, com tempo suficiente de vida citadina incorporado no meu currículo (pois urbano também já fui) ao campo regressei logo que pude para viver a rusticidade de nascença e de criação. No campo ganhei a vida para poder criar e educar os filhos. Cumpri a minha obrigação de pai serrano e rústico. As grandes cidades dão-me urticária. No meio de tanta barafunda, de tanto trânsito, de tanta gente, sinto-me solitário, prisioneiro sem a liberdade natural e rústica que exala das serras e dos montes, das águas correntes. A poesia cantante das fontes. É a vida, mas esvanecidas as saudades, adeus a Lisboa ...

Os cavalos acomodados sob o capô do carro, num misto de tristeza e alegria, relincham quando me vêm aproximar de malas feitas. Estamos de abalada, de regresso à serra. Mas desta vez, nem A8, nem A1,  nem  Áreas de Serviço. Pedi ao meu filho Valter e esposa que me ajudassem a sair daquela  teia de tarântula e me orientassem até eu entrar na velhinha ESTRADA NACIONAL N. 2. Que sim, senhor!

Ocultando a verdadeira razão da minha sugestão, disse-lhes que precisava de fotografar e filmar o Mosteiro da Batalha. Convinha-me esse trajeto. E eles, face ao meu desejo (sempre prontos a agradar ao pai) resolveram acompanha-me até lá com os meus netos.  Metidos no seu carro, rodaram à minha frente e eu atrás deles. Eles a conversar certamente uns com os outros e, se calhar, os pais a dizerem aos meus netos que por ali tinham transitado com os avós, em pequenos,  vindos do Alentejo. E eu a falar com os meus botões e a despedir-me consciente e definitivamente daquela  estrada. Esse foI  o verdadeiro,  íntimo  e oculto  objetivo da minha opção de regresso. Não voltaria a passar por ali ao volante de uma viatura.

Chegados à Batalha fomos almoçar. Visitámos o Mosteiro. Filmei e tirei fotos. Todos tirámos fotos e filmámos. Hoje quem não apertar na palma da mão, nem usar aquele objeto retangular que, para além de pôr duas pessoas a falarem à distância, tira fotos e faz vídeo, está fora do tempo. É info-excluído, adjetivo que não assenta em nenhum dos meus filhos, das minhas noras e meus netos. Todos usam as novas tecnologias. Até aquele pingo de gente que vamos ver especado, sozinho, a mirar o Mosteiro da Batalha. Antes de aprenderem o «a,e,i,o,u» aprendem a manejar e a fazer uso do  Ipad, do Iphone, do telemóvel,  do comando da televisão. Virar a câmara para uma pessoa e fazer um clic não é para eles um bicho de sete cabeças. Fico espantado com tanta agilidade, tanta intuição, curiosidade e saber.

2-Guy-1 - REDZNum instantâneo, o meu neto GUILHERME, de pouca idade, foi apanhado, pela câmara da mãe, especado  a fixar um dos alçados laterais do monumento. Sozinho. Admirado. Encantado. No universo do seu imaginário, que  ideias, que sentimentos, que emoções lhe despertaria aquele monumento para ele se posicionar de tal jeito? Alvitrei, para mim, que ele, quando fosse grande, seria arquiteto ou historiador. É que também eu, já adulto, tal como ele, agora menino, me vi naquela posição especado, espantado e vaidoso, a olhar as pautas de exames publicadas no Liceu Salazar, em Lourenço Marques. Não era para menos, com todos os restantes examinandos a olharem-me de soslaio, cheios de interrogações. Na disciplina de  Português, colada ao meu nome, estava a nota 18,3, numa escala de 1 a 20. A nota mais alta entre as centenas de alunos, daquele liceu e do Liceu António Enes, os únicos que existiam naquela cidade. 

Estava a iniciar a minha carreira académica e aquela nota, a melhor entre as melhoras, foi, nos meus estudos, um impulso do tamanho, do peso, do valor e do significado do MOSTEIRO DA BATALHA. Como foi conseguida? Eu vos conto. 

Nesse tempo os testes de exame da disciplina de PORTUGUÊS, divididos em blocos, terminavam obrigatoriamente com uma composição  subordinada a um tema. Naquele ano saiu na rifa o MOSTEIRO DA BATALHA. Distribuído o papel, discorrêssemos sobre ele, sem esquecermos o nome completo do monumento, que não vinha referido. Por mim tudo bem. Eu, que sempre levei os estudos a sério e já sabia, de jeito, alinhavar frases com sujeito, predicado e complementos, li atentamente o teste de cima a baixo, rosto e verso. E disse para mim próprio: estás no papo. E estava. Era o MOSTEIRO DE SANTA MARIA DA VITÓRIA.  Daí essa nota. A primeira batalha estava ganha. E, confiante, parti para as batalhas seguintes, até acabar o CURSO. 

3-Mosteiro  c - REDZFeitas as despedidas, ali, na Batalha, eles, os meus filhos e netos, rumaram a sul e eu a norte. Entrei na ESTRADA NACIONAL N. 2, a mesma que, com ligeiras alterações e melhoramentos, a ligar a  Batalha a Viseu com as curvas do Luso no percurso, me havia já consumido quilómetros de cuidados, de energia, de atenção,  acompanhado de mulher e filhos pequenos. Numa só tarde, rodando estrada fora, olhos em frente, sentado na plateia, desbobinei um filme com quilómetros de fita e banda sonora a chilrear de futuro, de alegria, de felicidade e de esperança. E passei Coimbra. E cheguei espora aos cavalos nas curvas e contracurvas do Buçaco. E fiz um intervalo junto à fonte do Luso, onde, obrigatoriamente, estacionava a Dyane, há muitos anos para bebermos água fresquinha. Depois de repetir esse gesto tão familiar, olhei em redor e perguntei-me onde estava o mundo. O trânsito de outrora. Contemplativo prossegui viagem. Acabou o intervalo.  

A minha opção de regresso a casa por esta via era a despedida definitiva da velha estrada. A idade impõe travões à vontade e creio ser pouco inteligente não aceitar isso naturalmente. Estava ciente de não voltar a fazê-lo. Chegado a Viseu rumei direitinho Castro Daire. E não dei permissão ao dispositivo da via verde  fixado no para-brisas do carro que me interrompesse o pensamento e as emoções com o seu "pip"  interesseiro e ganancioso. Deixei de lado A24 e continuei pela antiga ESTRADA NACIONAL N. 2. Passadas as Termas do Carvalhal,  descidas as curvas da Soalheira  e vencidas as curvas da Garcia, segui em frente. Virei à esquerda e subi a arriba que passa ao lado do Quartel da GNR,  antiga Cadeia Comarcã. Na primeira rotunda virei à direita e rumei a casa. Meti o carro na garagem e, na parede da frente, projetado pelos faróis, leio, em letras garrafais: "THE END".

Mosteiro da Batalha

https://youtu.be/lzD232P5e2M

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.