Trilhos Serranos

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domingo, 29 janeiro 2017 13:19

BUROCRACIA, 1

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BUROCRACIA, 1

O último programa da RTP1 "SEXTA ÀS 9", de Sandra Felgueiras e outros,  mostrando-nos o estado a que chegou o nosso PATRIMÓNIO HISTÓRICO e a culpa disso a MORRER SOLTEIRA, sugeriu-me a  repor aqui parte de um texto que escrevi, hã anos, relativo aos TRILHOS que tive de pisar para adquirir a foto do BÁCULO DA ERMIDA DO PAIVA, para ilustrar a CAPA do livro, cujo miolo versava a história do MOSTEIRO DA ERMIDA. Assim:

«FUNÇÃO PÚBLICA

 “(...) Hoje, infelizmente, as chefias desmultiplicam-se, aquilo que deveria ser feito por um é, normalmente, repartido por vários (...) Há em Portugal uma cultura de funcionalismo público no pior sentido do termo, ou seja, a função constitui mais uma oportunidade de emprego seguro do que de afirmação de carreira profissional (...)”

 Gomes Fernandes, “Função Pública in  JN de  01-06-20

Báculo-RANSPARÊNCIA-REDZPois foi. Desejando, por isso, obter uma fotografia do BÁCULO, existente no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa,  destinada a ilustrar  a CAPA do livro, cujo miolo versava sobre a história do Mosteiro da Ermida, em 2001-03-10, dirigi uma carta ao senhor Diretor daquela instituição.  Em 2001-03-20, através do ofício 377/16-M-1/01, assinado pelo senhor Diretor, Dagoberto Lobato Markl, fui gentilmente informado que, para o efeito pretendido, devia dirigir-me à “Divisão de Documentação Fotográfica»,  Calçada do Mirante à Ajuda, 10 A, 1300-418 LISBOA.

 No dia 26 do mesmo mês fiz o pedido àquele Departamento. Em 01-04-03, não obstante eu ter dito nas minhas duas cartas que a foto se destinava  a ilustrar o texto descritivo da imagem fotografada a figurar num trabalho de “investigação sobre o Mosteiro da Ermida” recebi o ofício 103/01, assinado pela senhora Chefe de Divisão, Vitória Mesquita, a perguntar para que efeito pretendia a imagem: se “para investigação e/ou publicação e em caso afirmativo em que obra e título, dado terem preços diferentes”.

Em face disso, e porque a floresta burocrática me dá comichão mental,  passei a palavra ao senhor vereador do Pelouro da Cultura que, em contacto telefónico mantido com a senhora D. Vitória Mesquita, presenciado por mim, soube que o preço era diferente, conforme a foto fosse pedida pelo autor ou pelo Município. Se se destinava a um livro a editar pela Câmara era melhor ser esta a solicitar a foto. Foi o que a Câmara Municipal fez através do ofício nº 103/101, de 2001-04-24.

 A partir daí o assunto não era mais comigo. A resposta, sem fotografia, veio pelo ofício 138/01, com data de 01-05-08, assinado, agora, (quantos vão já!) pelo técnico de fotografia e radiografia principal, José Pessoa”  chegaria acompanhada do “IMPRESSO-FACTURA PARA CEDÊNCIA DE IMAGENS E AUTORIZAÇÃO DE REPRODUÇÃO” em cujo verso se estipulam as condições que a seguir transcrevo, no essencial para, em letra de forma, ficarem os entraves que se vão encontrando na  construção do saber e na divulgação da História e da Cultura, neste início do século XXI: 

1º - A fotografia só seria enviada depois de o IPM  receber antecipadamente “um cheque do respetivo valor”, ou seja,  8.700$00 (oito mil e setecentos escudos).

2º - “As transparências a cores são cedidas por um prazo máximo de seis meses. O IPM reserva-se o direito de cobrar 10% do valor acordado por cada mês que ultrapasse o referido prazo” incorrendo o utilizador, “por perda e dano das imagens cedidas no pagamento de 20.000$00 (vinte mil escudos).

3º - As autorizações de publicação são cedidas para uma única publicação, salvo outra indicação expressamente referida”.

4º É proibida a reprodução de documentos fotográficos e obrigatória a identificação de cada imagem publicada: o “museu ou serviço donde provém, o autor da fotografia e a Divisão de Documentação fotográfica – Instituto Português de Museus”

5º - “O posterior envio ao IPM de três exemplares da respetiva publicação, quando as imagens nela inseridas constituam mais de 50% das imagens publicadas, ou da respetiva página quando tal não se verifique”.

Satisfeitas as exigências, preenchido o formulário e enviado o cheque acompanhado do ofício nº 1562  BÁCULO.CAPA-REDde  01-05-18, assinado pela presidente da Câmara em exercício, engª Maria Eulália Silva Teixeira, aguardou-se que chegasse a “transparência”. E esta chegou, finalmente, acompanhada do ofício nº 194/01, de 01-06-14, Proc. Nº 074/01, com a assinatura ilegível da pessoa que assinou em nome da chefe de Divisão, Vitória Mesquita.

E eis como a saga da fotografia do báculo da Ermida destinada a ilustrar a CAPA do meu livro, ilustra o funcionamento de uma instituição que, em vez de, por todos os meios ao seu alcance, incentivar, propalar  e dar vida à cultura, parece estar apostada em entravá-la, em mumificá-la adentro das  suas urbanas e aveludadas vitrinas.

Veja-se quantos ofícios, quanta papelada e telefonemas foram precisos para a obtenção de uma simples fotografia! Há quem se queixe da burocracia (ela não é a dama dos meus afetos) mas, pior do que a burocracia necessária a um Estado organizado, é a paralisante mentalidade burocrática que impera em muitas repartições públicas. Impõe-se urgentemente a reforma estrutural do Estado e, a par dela, a reforma estrutural da  mentalidade centralizadora e estiolante que vem de tempos idos. 

 (...)

E para que conste, acrescento: no último ano do século passado, os clérigos responsáveis pela Paróquia de S. Pedro, de Castro Daire, sabendo da existência de um “óleo sobre tela – Escola Sevilhana – séc. XVII, no Museu dos Mártires, Nagasaki (SJ)”, Japão, onde está pintada uma figura masculina e cuja legenda diz ser o retrato do Pe. Sebastião Vieira, natural de Castro Daire, a fim de homenagearem aquele jesuíta por alturas do “Jubileu- 2000” solicitaram, por fax, ao responsável pelo Museu, uma fotografia desse óleo. Sem mais burocracias nem encargos, em menos de uma semana, o pedido estava satisfeito e, em resultado disso, eis divulgado, num desdobrável patrocinado pela Cx. Crédito Agrícola de C. Daire,  esse mesmo retrato conjuntamente com um texto escrito acerca dessa personagem por M. Gonçalves da Costa  na sua “História do Bispado e Cidade de Lamego”. O mesmo retrato que a médica-pintora, de grande sensibilidade artística, Drª Margarida Mano, reproduziu em “óleo sobre tela” e ofereceu à Paróquia de Castro Daire, para figurar na capela de S. Sebastião. Fotografado pelo “Notícias de Castro Daire” e divulgado no nº 250 de 24 de Junho de 2001 (primeira página)  os beneficiários foram os leitores e assinantes deste órgão de comunicação social que, dispersos pelos quatro cantos do mundo, ficaram a saber do evento e a conhecer uma excelente obra de arte. 

Nota: o texto integral da saga burocrática aqui abordada figura no meu livro «MOSTEIRO DA ERMIDA», ed. em 2001,  pp.. 65 A 69. E bem pode aplicar-se aqui a expressão brejeira muito usada em linguagem popular: «eles não fazem nem saem de cima».

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.