Digamos que o livro «Nova Floresta ou Silva de vários apotegmas» (I Tomo) do Padre Manuel Bernardes, a cirandar, década após década, por entre pessoas, armários e copeiras fumarentas da minha terra natal, chegado à minha mão, nestes princípios do século XXI, à semelhança do filão de volfrâmio que, sendo eu ainda pequeno, os homens e mulheres de Cujó, de saca a tiracolo, camartelo, picareto e gasómetro na mão, chama azulada a sair-lhe do bico, resultante dos pingos de água sobre o carbureto, gás acetileno a romper o breu das profundezas da mina, a alumiar os sonhos dessa gente que, durante e no pós guerra, buscava melhorar a sua vida material, eu, à semelhança deles, dizia, penetro no filão deixado por Manuel Bernardes e, em busca do meu enriquecimento cultural, encontro os apotegmas, os valores e os princípios que moldaram as mentalidades, as atitudes e os comportamentos das gerações que me precederam, aqueles que levaram uma mulher a confessar-se e a penitenciar-se publicamente na Igreja Matriz, por ter sido mãe de uma filha que tinha por pai um padre. (ver crónicas anteriores) Isto, nos anos 60 do século XX. Mas como um, dois, três é a conta que Deus fez e o padre sabia contar, ignoro se as outras duas mães de S. Joaninho passaram por igual teste de salvação.De facto, para entendermos essa atitude de perdão pessoal e colectivo, a humilhação pública a que teve de sujeitar-se a pecadora, para entendermos todos os movimentos ligados à emancipação feminina, à libertação da mulher dos nossos tempos, não há como recuarmos às profundezas do passado, penetrarmos nas páginas da história e da literatura, remontarmos aos tempos bíblicos e, atentos à pena e à palavra dos MENTORES, esses oleiros de heróis e santos, cuja obra a Santa Inquisição não queimou, teremos matéria de sobra para enchermos o saco, apagarmos o gasómetro e, à luz do Sol, à luz da liberdade do pensamento e da expressão, apreciarmos a riqueza extraída da mina.O Padre Manuel Bernardes, na linha do que diziam os sermonários do seu tempo, tinha bem presente o papel da mulher na sociedade e o perigo que ela representava na comunidade.Num sermonário manuscrito que encontrei na Biblioteca Municipal de Castro Daire, nos anos 80 do século XX, de cujo conteúdo fiz uso no meu romance histórico «Julgamento», saído a público no ano 2000 com a chancela da «Palimage Editores», de Viseu (diga-se, para aviso dos incautos, Editora de Apartado, da responsabilidade que foi de Jorge Fragoso, entretanto mudado para a «Terra Ocre, - Edições», em Coimbra, indiferente aos meus protestos e reclamações e contra o estipulado no «Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos», deixou, há um bom par de anos, de me prestar contas dos exemplares vendidos e dos que existem em armazém) nesse sermonário, dizia eu, o pregador, referindo-se à morte de João Baptista, proclamava entusiasmado:«E sabeis quem fez emudecer esta voz do céu? Quem havia-de ser? Uma mulher dissoluta, uma mulher desenvolta. Uma mulher lasciva. A meretriz do Apocalipse. A Isabel de Samaria. A Semiramis da Babilónia. A Cleópatra do Egipto: a Messalina de Roma; Herodíades, enfim, escândalo de Jerusalém e monstruoso aborto do seu sexo, foi a homicida fatal do Grande Baptista. Ah! E quantos estragos deste género não tem executado a mão poderosa que se deixa governar por estas detestáveis Circes do Amor desordenado! Ah! Que abismos de males não traz consigo a indignação de uma mulher quando chega a ser idolatrada nos Altares da sensualidade? A requerimento desta bárbara Medeia separaram os verdugos a maior cabeça dos Mártires e, colocada na ímpia mesa de Herodes, foi torpe despojo das vinganças da adúltera mulher de Filipe e lastimoso troféu da mais desenfreada Lascívia».(1)O autor do sermão, ainda que tenha deixado Eva fora da lista, tê-la-ia no pensamento ao arrolar todas estas mulheres da Antiguidade, cujos nomes e história de vida a maior parte dos cristãos ouvintes ignorava absolutamente. Não importava isso. Eram mulheres... e tanto bastava para lhes atribuir todos os males do mundo.E o Padre Manuel Bernardes?Esse, tendo por método partir de um adágio, de um dito, de um apotegma, um princípio filosófico ou moral, etc. para sobre eles discorrer e extrair doutrina edificante, tinha de começar por Pelágia, ela própria uma mulher da Antiguidade, uma pecadora pública, sórdida e feia que S. Nonno viu subir ao céu na «figura de uma candíssima pomba», depois de convertida.«De S. Nonno, Bispo de Heliopolis: «Estando este Santo com outros bispos no pórtico do templo de S. Julião Mártir, na cidade de Antioquia, passou pela praça Pelágia, moça gentia de rara formosura e pública pecadora. A qual ia mui acompanhada de servos, sentada em um jumentinho ricamente adereçado, toda brilhando telas e exalando âmbares e coberta de pérolas e preciosa pedraria constelada em jóias e brincos de vários e curiosos feitios.
|
quarta, 14 junho 2017 12:22
Escrito por
Abílio Pereira de Carvalho
CUJÓ - RETALHOS DE HISTÓRIA - VI
|
Publicado em
Crónicas
Abílio Pereira de Carvalho
Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.