Eu vos conto. Sentados lado a lado, no primeiro dia da Universidade, dois homens adultos, sem se terem visto em lado algum, dão-se ao conhecimento recíproco. Eles têm um objetivo comum: tirar o Curso de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lourenço Marques. Adultos que eram, trocaram cartões de visita (estava em moda esse início de relacionamento pessoal) e, vistos os nomes, JOAQUIM PEREIRA GUEDES e ABÍLIO PEREIRA DE CARVALHO, passaram a tratar-se pelos apelidos: ele era o Guedes e eu o Carvalho. Ele era natural de Britiande, às portas de Lamego e eu de Cujó, uma aldeia do concelho de Castro Daire. A bem dizer conterrâneos, encontrados ali, do outro lado do mundo, assim, fortuitamente.
Conhecidos desse modo, passámos a frequentar a Universidade e os cafés da cidade conhecidos por todos os trabalhadores-estudantes, não importava o grau de ensino que frequentassem. Lourenço Marques era outro mundo. Para benefício dos estudantes e prestígio e honra dos empresários, havia cafés com espaços reservados à estudantada de qualquer grau de ensino: Preparatório, Comercial, Industrial, Curso Geral dos Liceus, Curso Complementar dos Liceus e Universidade.
Lembro o café «MANUEL RODRIGUES», com cinema ao lado. Lembro o «SAFARI», com um cortinado a separar a parte do restaurante do café. Lembro a «PASTELARIA ATNEIA», bem perto do cinema Gil Vicente. E lembro a «COOPERATIVA AGRÍCOLA DO MALHANGALENE», onde somente se serviam e consumiam produtos lácteos. Aquele salão, de portas abertas ao público, era uma espécie de ESCOLA sem diretor nem serviços administrativos. Ali os alunos de grau mais elevado de ensino, tiravam as dúvidas aos alunos de grau inferior que lhes solicitassem ajuda, em qualquer momento. Uma autêntica sala de estudos. Bastava chegar à mesa de um deles: «sente-se, sente-se, então o que é?» Posta a dúvida, era imediatamente tirada e bastava um simples «obrigado» para ambos retomarem os estudos em mesas diferentes, em graus diferentes e se sentirem mutuamente felizes. Aquilo chamava-se cooperação e solidariedade.
Pois foi num ambiente assim que eu e o Guedes convivemos os primeiros tempos da Faculdade. Ele, não podendo estar presente em todas as aulas, por razões profissionais, encontrou em mim o apoio que necessitava, usando os meus apontamentos e debatendo depois, com os demais colegas (entre os quais a minha esposa Mafalda) a matéria dada, nos encontros que tínhamos nos espaços acima referidos.
Um dia, durante uma das sabatinas sobre a matéria agendada para o teste que se avizinhava, ele disse-me que não iria: «não me sinto preparado, não vou». Era matéria da cadeira gerida pelo Professor Doutor Humberto Baquero Moreno e tratava das «invasões bárbaras» contra o «Império Romano». Eu, que já era professor e à experiência de aluno juntava alguma experiência docente, eu, que via no Guedes uma pessoa inteligente, empenhada e de rápida aquisição de conhecimentos, achando que, naquele momento, ele estava errado na sua autoavaliação, ripostei-lhe: «amigo, pense bem! Se for fazer o teste, pode sair-se bem e avançar. Se não for, perde essa oportunidade e perde outra cumulativamente: não conte mais com os meus apontamentos, nem com a minha ajuda, nestas sabatinas».
Colocado entre a espada e a parede ele resolveu ir fazer o teste e tirou uma nota satisfatória. A partir daí creio que, para além do colega amigo, ele passou a valorizar mais a minha função de professor em início da carreira. E, sem alguma vez lhe ter perguntado, estou certo que se deve a essa minha atitude a oferta que ele veio a fazer-me da obra com o título «GRANDEZA E DECADÊNCIA DE ROMA», obra de cinco volumes, encadernação de luxo, cujas fotografias ilustram este apontamento. (ver foto ao lado)
Aconteceu no ano de 1973 e, visto o título da obra, eu a associei imediatamente ao teste das «invasões bárbaras» que ele fora fazer graças ao incentivo dado por mim, não sem o aviso de que perderia a minha colaboração, se não fosse.
Era o mês de Dezembro, noite de Natal, e eu tinha ido ao cinema com a minha mulher. De regresso a casa deparámos com um embrulho à entrada da porta. Convém lembrar que, nessa altura, não havia telemóveis nem as comunicações se faziam com as facilidades que se fazem hoje. Entrámos e vimos que, colado ao embrulho, estava um «cartão de visita», cujo rosto e verso aqui reproduzo na íntegra:
«O Guedes, pretende manifestar, através desta pequena lembrança e em quadra de sentimento particularmente comunitário, a sua gratidão pela ajuda no êxito encontrado no 1º Ano do Curso de História e contribuir, ainda que modestamente, para o vosso recheio bibliográfico, base dum futuro feliz que, do coração, vos auguro, com um abraço amigo.
LM, Dz. 73»