Nós, pastorinhos e pastorinhas, sempre que por ali andávamos, sozinhos ou em grupo, tínhamos de mostrar aos outros, ou a nós próprios, que "não tínhamos pecados". E essa prova consistia em atravessarmos, de lado para lado, aquela talisga, em forma de L invertido, formada por aqueles dois penedos de encosto, tal como acontecia com o "buraco" natural existente naquele fragão, em terras de Sernancelhe, onde se levantou o Santuário da Senhora da Lapa, lugar onde, todos os anos, a pé ou em cima de burros, iam muitos moradores de Cujó, em novena e romaria.
Naquela idade, esguios como fuinhas, atravessávamos o "buraquinho" sem qualquer esforço, pois o único grande pecado que carregávamos connosco era trazer no bornal um pequenino naco de broa de milho, rijo que nem cornos, ajudado a empurrar pela goela abaixo com o leite que tirávamos à cabra mansa para o púcaro de alumínio, louça doméstica que não dispensávamos, que podia amolgar, mas não partir. Leite puro que, bebido directamente do púcaro, nos deixava um bigode branco igual ao do meu tio João Leonor, carpinteiro de profissão, ou ao contrário, nos deixava limpinhos da silva, se fôssemos à fonte de Vale de Fraga e lhe misturássemos água para ser mais quantidade e volver fresquinho que nem sorvete.
E era a esse gesto ingénuo e pastoril que se resumia nossa brincadeira. Mais tarde aprendi nos livros que esse tipo de "ritual", a entrar e a sair do "buraquinho", tinha outro significado, que não uma simples brincadeira de pastorinhos. Não vou aqui explicá-lo. Mas aconselho a leitura do livro "Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa", (da Assírio e Alvim,1988), do professor universitário, etnólogo, etnografo e sociólogo, Moisés Espírito Santo, exatamente no capítulo que dedica ao Santuário da Senhora da Lapa e ao fraguedo com o buraquinho que lhe deu origem e onde todos vão testar os pecados que carregam consigo. Hei-de fazer vídeo.
