Trilhos Serranos

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sexta, 29 março 2019 13:12

ELES AI ESTÃO... E PODEM CONTAR

Escrito por 

NARRATIVA VIVIDA

Hoje, num encontro inesperado, o meu amigo de liceu, em Lourenço Marques, Juiz Desembargador, Pedro dos Santos Gonçalves Antunes, natural de Figueiró dos Vinhos, fez questão de me apresentar pessoalmente um ancião com 91 anos de idade, de seu nome António Marques Boavida, mecânico de profissão, que passou a vida dentro de um fato macaco com as mãos pintalgadas de óleo e de ferrugem.

PEDRO E AMIGO-2 - Cópia

Ambos têm presente um episódio passado em 1962, em terras de Figueiró dos Vinhos. Era um fim de tarde de verão. O jovem Pedro, então empregado de escritório numa fábrica de cerâmica, em Almofala de Baixo, regressava a casa dentro da cabine de uma camioneta da empresa, carregada de tijolos. Junto de si ia o condutor e o ajudante, de seu nome Salvador. No exterior, sobre os tijolos, acomodava-se um jovem operário de 15 anos de idade. Antes ali empoleirado do que fazer a viagem de retorno “pedibus calcantibus”. Ah, pois é, nesses tempos, logo que uma criança pudesse esgadanhar a vida, fosse no comércio, fosse nos campos, fosse nas obras, ala para o trabalho, pois “quem não trabuca, não manduca”.

 Era o fim de mais um dia de labor. De retorno a casa, uma reta da estrada convidou o condutor a acelerar. E ele acelerou. Só que, ao fim da reta estava uma curva fechada, cega, de viragem à esquerda. O condutor, de seu nome Isidro, homem de meia idade, não reduziu a velocidade e o jovem Pedro alertou-o para o perigo que corriam. “Qual quê! Isto é ginja!” Respondeu convicto o condutor, mantendo a velocidade.

Não era ginja. Era vinho. Ele estava embriagado e “soprar no balão” era coisa e controle do porvir. Nesse estado, incapaz de negociar a curva, a camioneta já inclinada passou a rodar somente sobre as duas rodas da direita e, ajudada pelo balanço dos tijolos, não tardou a ficar de pantanas, de quatro rodas para o ar, junto de uma ravina assustadora. De caminho, levou a eito uma série de postes de cimento que ladeavam a estrada, convidando-os a dormir e, deitados, deixarem a posição vertical e hirta, dispostos como estavam cumprir fielmente a missão para que ali foram levantados.

ALMOÇO ROCHA

Abro um parágrafo, para dizer, aqui e agora, que meu amigo Pedro, Juiz Desembargador, jubilado, já me tinha relatado este episódio da sua vida, em 2017, quando se deslocou a Castro Daire, ao MUSEU MARIA DA FONTINHA, no GAFANHÃO, a fim de assistir à entrega do DIPLOMA que a “ACADEMIA DE LETRAS E ARTES LUSÓFONAS” me atribuiu, no qual se lê que «por mérito» fui promovido a «membro Académico Honorário da Academia de Letras a Artes Lusófonas».IMG 1652

 

Prosseguindo. O condutor foi projetado num ai porta fora. E, da sua perícia e estado de embriaguez, ficaram somente uns arranhões na pele. O ajudante, com os pés presos entre a chapa amolgada, conseguiu soltar-se por sí próprio e presenciar atento o resto do espetáculo. Estava safo daquela. O jovem que viajava sentado nos tijolos, foi projetado a metros de distância e aterrou num campo de milho, que nem paraquedista em fim de voo a enrolar o paraquedas. Sem um arranhão no corpo, ficou-lhe o susto para a vida.

E o Pedro? O empregado de escritório que alertou o condutor? Bem, esse, mais o ancião ANTÓNIO MARQUES BOAVIDA, de 91 anos de idade neste ano de 2019, homem que hoje conheci, no Gafanhão, têm mais que contar. E contam: o Pedro ficou com a cabeça presa na chapa amolgada. O seu corpo, tronco e braços a jorrarem sangue, parecia um odre furado a jorrar vinho depois de receber a chumbada de um assaltante de almocreve. E sair daquele estado e posição, por moto próprio, não havia meio, nem jeito.

Consciente do seu estado, rodeado que foi dos camponeses e camponesas que, dos arredores, acorreram curiosos ao local do acidente, língua solta, pediu que fossem chamar o senhor Boavida, o mecânico de automóveis.

E assim foi, só que, entrementes, com tanta gente em redor, onde há muita cabeça, há muita sentença. E mais ainda no fim de dia trabalho camponês, gente afeita ao trabalho de sol a sol, mas também ao alto consumo de vinho. E assim, iluminadas pelos efeitos etílicos, não faltavam opiniões: “botamos a camioneta lá para baixo e ele logo sai”.  Ouvindo isso, receando que tal fosse feito, a vítima presa, consciente do perigo,  esperneava e gritava: “não, não façam isso, esperem pelo mecânico, pelo senhor Boavida!”!

FIGUEIRÓ DOS VINHOSE o jovem em apuros, o mesmo que, mais tarde, viria a estudar DIREITO e a seguir a carreira profissional da Magistratura Judicial e, em consequência da profissão, botar sentenças, foi obedecido. A camioneta não foi atirada ravina abaixo e aguardou-se pelo mecânico salvador. Mas, irremediavelmente preso, ia ouvindo os lamentos das mulheres chorosas: "Tão bom rapazinho que era e vai morrer, coitado dele". E o rapazinho, de pernas soltas a sangrar, esperneava e, muito longe de vir  ser Juiz, sentenciava: “eu não quero morrer, eu não vou morrer”. E não morreu. Mas a todos estes anos de distância, diz-me agora que sentiu roçar por si a gadanha da morte. E que, nesse entretanto, lhe ocorreram os mais impensados e caricatos pensamentos, tais como abdicar de tudo o que na vida dá prazer, para, mesmo sem prazeres, ficar vivo. Agora ri-se da “parvoeira” pensada. Mas, acrescenta em tom sério: com a morte a bater-nos à porta, os nossos neurónios, comunicando entre si, assustadiços, produzem as mais absurdas ideias, as mais resplandecentes faíscas.

Quase uma hora decorrida naquela situação, preso entre chapas, chegou o mecânico salvador. Munido de um macaco hidráulico, postado como devia e  exigia a emergência de ocasião, procedeu ao desencarceramento do sinistrado, tarefa que hoje cabe aos bombeiros e mais agentes da Proteção Civil, técnicas na altura fora de moda, nas estradas portuguesas.

Libertado da chaparia, foi imediatamente levado para os Hospitais da Universidade de Coimbra, numa ambulância dos Bombeiros Voluntários de Figueiró dos Vinhos. Bastante maltratado e marchetado de sangue, mas sem ossos partidos nem órgãos afetados. Já no hospital, uns pontos numa das orelhas e outros tantos nos joelhos remendaram-lhe o fato com que nasceu, rasgado no acidente. Com dores por todo o corpo, olhos à “belenenses” e pele das costas encarquilhada, o “Diário de Coimbra”, no dia seguinte,  noticiava ter havido “um acidente de viação em Almofala/Figueiró dos Vinhos” do qual resultou um ferido, politraumatizado, um jovem de 17 anos de idade, mas fora de perigo de vida.

Ficou internado uma semana. Depois disso fez-se à vida. Vim a conhecê-lo muito longe dali, na costa oriental da África, em Lourenço Marques, no Externato Marques Agostinho, a frequentarmos ambos o Curso Complementar, dos liceus, antigo 7º ano, pré universitário. Feito isso, ele seguiu Direito e eu segui História. Mantivemos a amizade e camaradagem todo este tempo. E, passados mais de 50 anos, neste encontro inesperado, fez questão de me apresentar o seu salvador que, apesar dos seus 91 anos de idade, mantém o verbo fluente e lucidez bastante para relatar o episódio, tim...tim...por tim.

Sendo assim o Pedro podia dispensar-me de ouvir da boca do senhor BOAVIDA, o evento que ele já me tinha contado, mas creio que ainda não perdeu o vício profissional: gostar de confirmar os factos pelas testemunhas intervenientes no caso em análise. E eu, ao ouvir da boca do ancião, o que já tinha ouvido da boca do jovem Pedro, vi a VERDADE de tudo isso no brilho dos olhos desse protagonista de avançada idade, feliz pela boa ação que praticou: salvar uma vida humana.

E, em tudo isto, anotei uma coincidência digna de menção: o senhor António Marques Boavida foi o salvador do jovem Pedro. O ajudante que viajava na cabine, com o Pedro, chamava-se Salvador. Eu, através do Pedro, vim a conhecer e a ser amigo, do Juiz Conselheiro, Salvador da Costa. O meu pai chamava-se Salvador de Carvalho. Bastantes salvadores nesta narrativa autêntica. Um, por ação, outros pelo nome. Mas, em verdade vos digo, quem não se salvou, nem se livrou de ficar preso atrás das grades foram alguns criminosos, cujos atos praticados se destinavam a levar “boa vida” e, por isso, caíram nas malhas da Justiça e tiveram de ser julgados e sentenciados pelo Meritíssimo Juiz Pedro dos Santos Gonçalves Antunes, o jovem que ficou preso entre as chapas amolgadas e, graças às diligências de António Marques Boavida, um experiente mecânico de automóveis, pôde continuar a viver, a estudar, a trabalhar e, já jubilado, a usufruir de uma BOA VIDA. 

Pois que seja assim por muitos anos. E parece-me que vai acontecer isso mesmo, dada a boa cepa ascendente. Boa cepa, digo muito bem. Não fosse ele natural de FIGUEIRÓ DOS VINHOS, cujo nome se não deverá, propriamente, ao acaso. E estranho é que nenhum estudioso, tanto quanto averiguei, se tenha debruçado sobre a origem do topónimo. Eu próprio me fiz fotografar junto de um tonel de vinho, abraçado ao Dr. Arménio Vasconcelos, na antiga adega do seu sogro, em Almofala, aquando de uma visita que lhe fiz, devido ao seu estado de saúde,  na companhia do meu primo Manuel Carvalho Soares (ver foto acima). E repito: digo “boa cepa ascendente” baseado na foto que este meu amigo  postou no seu mural do Facebook, mais no texto explicativo que adicionou, em 06 de fevereiro p.p. Ora vejam e leiam o que ele escreveu:

MÃE

Este meu amigo de infância, o Firmino, partiu ontem. Que descanse em paz. Nesta foto recente, num momento de afeto, em que dava os parabéns à minha mãe, pelo seu centenário. Deixa boas lembranças. Fica a saudade”.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.