Trilhos Serranos

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domingo, 02 junho 2019 19:57

TRISTE SURPRESA

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O DESEJADO MILAGRE

Há dias desloquei-me a uma aldeia do concelho, numa daquelas costumeiras pesquisas a tentar descobrir coisas e gentes.

Entrei no povoado e, julgando ter chegado à moradia da pessoa procurada, subi umas escadinhas e vi que a chave estava na porta. Era um bom sinal. A pessoa estava em casa e a minha viagem não seria em vão.

 Mota - CópiaBati à porta: “ó da casa!” e de dentro ouço uma voz: “entre!” Mesmo à maneira beirã.

Rodei a chave, abri a porta e à minha frente estava um corredor. Fui falando e andando em direção à voz. E eis a surpresa. Na primeira porta, à esquerda, deitado na cama, vejo um homem esquelético, barba por fazer, despenteado, aparentemente doente. Tronco nu, no chão junto à cama, do lado da cabeceira, um velho alguidar, com aparência de servir de escarradeira. Antes de dizer ao que ía, respirei imediatamente doença, dor e miséria humana.

Eu vinha saber de...”estou muito doente” ....ele não deixou que eu acabasse a frase. E eu rossegui: “era sobre...” acabei a frase e veio a resposta: “não sou eu...mas quem procura não está na aldeia...só à noite”.

Conversa arrastada, doente, a condizer com a fisionomia, olhar triste, eu, como que a meter conversa, perguntei-lhe: “o senhor conhece-me?”. A esta minha pergunta ele sorriu e respondeu: “acho que sim, mas não localizo...estou muito doente”. E estava mesmo. Via-se e cheirava-se.

Agradeci-lhe a informação, desejei-lhe as melhoras, e, desumanamente, tive pressa de dar costas aquela habitação, impestada de vista e cheiro incómodos.

Montei a mota e, como que seguindo comigo no lugar do do “pendura”, as imagens de que eu fugia, seguiam coladas a mim. Rodei o punho, acelerei a mota, mas, por mais que acelerasse, lá vinham coladas a mim o alguidar/escarradeira, aquele leito desalinhado, aquele homem franzino, barba crescida, tronco nu, esquelético e aquele momentâneo sorriso, como que vindo de pessoa que me conhecia e eu conhecia. sem conhecer. Nem o nome dele sabia, nem o fixei. 

E, a rodar na estrada, lembrei-me daquela cena bíblica de Jesus a curar um paralítico. Não estavamos em Cafarnaum, nem eu era Jesus, o milagreiro.  Tivesse eu esses poderes e daria imediatamente meia volta, voltaria aquela casa, aquele leito e, num só instante, todo aquele quadro bruegeliano, todos aqueles queixumes, todos aqueles presentimentos de quem sente rondar por perto a senhora da gadanha, eram atiradas borda fora. Aquele senhor, ali deitado, ficaria curado, fora da cama, sorridente, a conviver com os demais populares da terra. Era o dia de festa anual da padroeira da aldeia: a SENHORA DE FÁTIMA. E eu, enfim, depois do milagre,  seguiria sozinho de mota, esvaziando o significado do ditado popular: “vale mais só do que mal acompanhado”.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.