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quarta, 03 julho 2019 14:03

CUJÓ - UMA HISTÓRIA DE VIDA

Escrito por 

 VIDA MADRASTA

Folhear o "LIVRO DE REGISTO DOS PRESOS QUE DERAM ENTRADA NA CADEIA CIVIL DE CASTRO DAIRE" que engloba os anos de 1929  a 1937, é ler uma narrativa sociológica manuscrita, cujos protagonistas (à falta de fotografia) deixam o RETRATO completamente descrito no "BOLETIM ANTROPOMÉTRICO" (nome dado a cada folha do livro) acompanhado da característica mancha das impressões digitais. 

1- Albino de Freitas-preso - REDZFruto do estudo exaustivo que fiz (e porque entendo que o Facebook não serve só para publicar futilidades) posso dizer que, nestes 8 anos, passaram pela CADEIA CIVIL DE CASTRO DAIRE, 297 homens e 69 mulheres. Que do total de homens só 118 sabiam assinar e 179 eram analfabetos. E as mulheres? Do total de 69, só 7 assinaram a "ficha" e 62 apuseram a sua impressão digital. No total temos 366 presos, dos quais só 125 sabem assinar e 241 são analfabetos. 

E que tipo de crimes praticavam estes cidadãos e cidadãs para "malharem com o esqueleto na cadeia"?

Eu tenho a resposta para isso, mas o resultado terá de ser apresentado em grelha, onde especificarei os crimes de que eram acusados, quer os homens, quer as mulheres. Contudo, para aguçar a curiosidade dos estudiosos, direi que, à cabeça, estavam "as ofensas corporais": 129 ao todo, 107 atribuídos a homens e 22 a mulheres. Segue-se o crime de "furto". Total 82, sendo 64 atribuídos a homens e 18 a mulheres. E por aí adiante até chegarmos a "infanticídios", "violações", "estupros" e "envenenamentos". É o Portugal dos anos 30 escarrapachado num livro de presos.

O caso a que dou hoje destaque passou-se em Cujó e preencheu a minha infância como exemplo daquilo que se NÃO deve fazer em sociedade, sob pena de se ir parar à cadeia ou se ser ostracizado pelos restantes membros da comunidade.

O facto foi que os membros de uma certa família começaram a sentir, de repente, certas cólicas intestinais e a sofrer de uma incontida e permanente diarreia.

Suspeitando-se de ENVENENAMENTO veio a descobri-se que a parte interessada na totalidade dos bens de FAMÍLIA havia despejado uma certa porção de veneno em sítio que sabia ser consumida lentamente e que, que, por essa via, o veneno teria de surtir efeitos mais tarde ou mais cedo. E surtiu.

2-Albino de FreitasFalecido um dos envenenados, o médico legista subiu até Cujó a cavalo (uma autêntica aventura, na época) e pediu ao meu pai, Salvador de Carvalho, para o ajudar na autópsia. E contava o meu pai que tudo começou com um corte da pele na testa da vítima, por forma abriram-lhe seguidamente a caixa craniana e chegarem ao cérebro, peça a analisar em laboratório.

Recolhidas as informações convenientes o caso seria estudado nas instâncias próprias, a fim de, logo de seguida, os resultados serem entregues a um Sherlock Holmes português e este, acompanhado do inseparável Dr. Watson, seguindo as pistas deixadas por alguns intervenientes e testemunhas ouvidas, deslindariam o mistério. Nota, após nota, o veneno só podia ter sido administrado de forma constante e, desse jeito, em pequenas doses iria matando lentamente, mesmo que com dores infernais e diarreias incontidas. Só podia ser absorvido nas refeições diárias. E nas refeições diárias entrava infalivelmente o sal. Chegados a esse raciocínio, foi mandado analisar o resto do produto existente no saleiro. Isso mesmo. Cheque mate.

E o veredicto chegou, dito pelo homem do cachimbo. Como descobriu, isso, detective:

- Elementar, meu caro Watson!

E elementar foi também, logo de seguida, entrarem na cadeia ALBINO DE FREITAS e as mulheres intervenientes no crime, incluindo aquela que, mais nova, frequentadora da casa e insuspeita, se prontificou a colocar aquele pacotinho de produto no saleiro, sem saber que se tratava de «ARSÉNIO», cujos compostos são "extremamente venenosos".

Conheci todas essas pessoas. Depois de cumpridas as penas de prisão regressaram à terra natal. E não me consta que tenham sido votadas ao OSTRACISMO pelos restantes membros da comunidade. A anos de distância apraz-me registar não o acto cometido, mas a atitude revelada pelas pessoas de CUJÓ de NÃO marginalizarem as pessoas que tinham expiado na cadeia os crimes cometidos. E não havia PROGRAMAS DE INSERÇÃO. É a PEDAGOGIA que registo em favor das GENTES DE CUJÓ, da minha terra natal.

COMENTÁRIOS;

1 - Bártolo Ferreira 

Estimado professor Abílio, na dúvida fui procurar no dicionário; não terá sido «Arsénio» mas sim «Arsénico», o tal ingrediente, extremamente venenoso, usado de forma calculada milimetricamente para "limpar o sebo" àqueles membros da tal família. Acho estranho que depois de condenados e haverem cumprido as penas os autores não tenham sido ostracizados pela comunidade de Cujó depois do seu regresso. Será por que as penas foram extremamente longas (e justas), o que veio a contribuir para atenuar na memória das pessoas o sentimento de ódio contra elas? Um abraço.

2 - Elisabete Meneses

 Obrigado professor por mais uma mararilhoda " história" .como poderia ter eu conhecimentos de todos estes factos que ocorriam no tempo de meus avós, se nao fosse o grande" mestre" e historiador a quem admiro e respeito o meu ex professor de história Dr Abílio Pereira de Carvalho .os meus parabens e atrás agradecimento por todo o seu trabalho.obrigada

3 - José Duarte 

Pois foi como dizes, Abilio. Eu ainda não era nascido no ano do crime, mas porque se tratava da minha familia este caso foi-me contado na minha infancia. O falecido era tio do meu pai e irmão da minha avó paterna. A intenção dos criminosos tinha por finalidade eliminar toda a familia do falecido, sendo que a seguir a minha avó como era irmã, herdaria os bens. Após este acto, as proximas vitimas seriam a familia da minha avó paterna. Eliminada esta familia, o herdeiro era o tal sr. Albino por parte do meu avô paterno. Foi um plano bem planeado, mas embora, deixando vitimas, falhou. Foi-me contado também que o citado veneno foi primeiro testado numa cadela e que as principais impulsionadoras desta acção foram as duas senhoras indo o sr Albino a reboque delas. Eu não cheguei a conhecer o sr. Albino, mas conheci as duas senhoras e confesso, nunca simpatizei com elas. Admito, que a restante população visse este caso como não sendo nada com eles, mas os familiares não podiam ter ficado indiferentes. Abilio, um abraço.

4 - Lina Maria Zagalo Neves

 Algo parecido passou nos anos 1800 com a m/família materna de apelido Tentório Louzeiro, na zona de Serpa. Tudo porque os TIOS irmãos do meu tretavo queriam ser os tutores da m/Bisavô Isabel Joaquina ... os tutores foram morrendo uns atras dos outros, ate que não havia ninguém mais a matar e a roubar. Ainda esta por esclarecer a morte do meu Bisavô Bento Maria :'(. Como a maldade humana e tao antiga como o diabo !!!!!!!!

5 - Antero Freitas 

Caro colega, li com muito interesse este seu extraordinário texto. Apraz-me saber que o bichinho da investigação, recolha e divulgação continua bem aceso. Obrigado por tudo isso. Um abraço.

 NOTA: posto no FACEBOOK em 08-03-2017

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.