Trilhos Serranos

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sábado, 27 julho 2019 17:59

O CAVALINHO

Escrito por 

A VIDA

Recentemente fiz eco, em vídeo alojado no Youtube e Facebook, da visita inesperada de um gafanhoto que se passeava sobre um dicionário e outros suportes de saber pousados num móvel doméstico.

Peguei na câmara de filmar (repórter é assim mesmo) e pus a mão a jeito, por forma a que ele, nestas suas deambulações domésticas, subisse para os meus dedos. E assim aconteceu. Mas, dispondo-se ele a mordiscar um deles, sacudi instintivamente a mão e ele perdeu-se, invisível, num qualquer canto do compartimento. E em vão foram as diligências que seguidamente fiz para encontrá-lo. Desisti.

1-gafanhoto - Cópia

Mas, eis que,  dois dias depois, ele apareceu-me no ladrilho do corredor, livre de empecilhos. E, para estranheza minha e dificuldade sua, as patas dianteiras apresentavam-se envolvidas numa espécie de luvas de boxe, feitas do cotão que, oculto atrás dos móveis, se prendeu às serrilhas naturais dos membros da frente, durante as suas pesquisas por tais esconderijos.

Face ao visto, tive de proceder a uma operação assaz delicada. Botei mão a duas pinças de relojoeiro e, presumindo que ele “saltasse” e me fugisse da vista, como fez da primeira vez,  assestei-lhe os bicos de uma pinça nas asas e imobilizei-o ali mesmo. Com a outra pinça procedi diligentemente à retirada das luvas, operação muito difícil de executar, já que as serrilhas, aqueles equipamentos naturais de que o bicho é dotado, seja usados para facilidade de locomoção, seja usados como tenazes para prender os alimentos, se recusavam a largar a presa e a descalçar as luvas. Acrescia a isso os movimentos instintivos do animal que, nem por sonhos lhe passava a ideia de que a minha intenção era facilitar-lhe a vida e não o contrário.

Conseguida a operação, corri a envolvê-lo em ervas, admitindo que, todo aquele tempo a deambular por detrás dos móveis, e pela forma como se apresentou no ringue, luvas do cotão, o teriam deixado debilitado e, sem energias, incapacitado de entrar em qualquer combate.

3gafanhoto - CópiaConstatando que o “cavalinho” começou a mordiscar as ervas, dei a boa ação por terminada, e deixei-o entregue ao seu destino.

No dia seguinte, disposto a continuar a “reportagem”, câmara pronta a disparar, dirigi-me ao local, mas só restavam as ervas para cenário. De gafanhoto, nem sinal.

E foi então que me lembrei de outros inquilinos meus que, seja no quintal das traseiras, seja no pátio da frente, fazem seus os meus domínios - os melros e pardais - que, não lhes bastando usarem e abusarem desses espaços, não se coíbem de deixar as marcas onde fazem poleiro, em prejuízo evidente do proprietário que, alérgico a tal pintura, começa já a pensar em treinar-se no uso da fisga, como fazia na infância, e dar fim aos artistas que fazem dos meus portões de entrada a sua tela.

Dito e “ouvisto” tudo isto, depois de alojado no Youtube e Facebook, um amigo meu, de seu nome Bártolo Ferreira, que se dá ao trabalho de marcar a sua presença no meu mural, indo além do cómodo “gosto”, “muito bonito”, “interessante” e por aí adiante, escreveu o texto que se segue:

2-gafanhoto - CópiaEra uma vez um «saltareco» aparentemente ainda novato de cor esverdeada. Conhecedor da vida ao ar livre e sem regras quis um dia penetrar no mundo da sabedoria, dos livros, tão diferente daquele lá fora onde só havia sol, vento, plantas, folhas e coisas assim, até formigas. Para aprender algo mais do que a natureza lhe ensinava logo se encavalitou sobre um dicionário, no interior do qual, pensou, existia muita sabedoria. Não contou foi com a dificuldade, o esforço que era necessário para levantar a capa dura e pesada como rocha e penetrar no interior daquele mundo do saber. Afinal aquilo era muito diferente do lugar donde viera; diferente e pior pois o próprio cheiro que ali se respirava nada tinha a ver com o campo, lá fora que até ali fora a sua casa. Quando quis sair dali para a liberdade só o conseguiu com a ajuda da mão amiga do Mestre, que, de olhar benevolente o observava. No entanto, o Mestre que o alimentou e o devolveu ao mundo da liberdade não previu o desenlace que se tornaria fatal para o «saltareco» de cor verde. Triste sina a sua”.

Outro amigo, Isidro Camilo Duarte, acrescentou:

Tem piada, pois na aldeia onde nasci, esse gafanhoto, não passava de um saltarico”.

 

Face ao que someii:

4- gafanhoto - CópiaPois. Ele é gafanhoto, saltarico, saltareco e até “cavalo”. Em Cujó, nós crianças, andávamos à cata deles para termos um “cavalinho”. Outros tempos. E já agora, para dizer toda a verdade, cada um de nós, miúdos, para ele não nos escapar depois de agarrado, éramos ”cirurgiões” sem anestesia. Em menos de nada as “molas” de saltar perdiam elasticidade, pois eram amputadas na articulação. Olaré! E soma e segue. Fazíamos o mesmo com os grilos. Metidos numa caixa de fósforos vazia, com furos vários, e ervinhas lá dentro, pois ter uma troféu desses era ser um herói. E para tê-lo havia, primeiro, que capturá-lo e, segundo, dar-lhe guarida e alimentá-lo. Quem sabia disto?”

Mas isso era em tempo de criancice. Em tempo de velhice, a amputação dos membros posteriores a “sangue frio” (sem sangue, porém) por forma a que o “saltarico”, o «saltareco», o «gafanhoto»  virasse “cavalinho” domesticado e preso numa caixa de fósforos com furos, sucederam-se os cuidados de lhe retirar as “luvas” de cotão dos membros anteriores e, inteirinho, com toda a sua elasticidade,  devolvê-lo à liberdade, enfrentando o seu destino natural: servir de pitéu a pardal ou melro que usa e abusa de todo o domínio meu.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.