Trilhos Serranos

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segunda, 02 setembro 2019 08:51

POR TERRAS DE CASTRO VERDE

Escrito por 

A TABERNA COM TALHAS DE VINHO

Não tenho imagem de câmara fotográfica saída, mas tenho a imagem na memória retida. Uma moradia térrea típica do Alentejo. Vejo a fachada, a porta de entrada um pouco recuada a partir da rua e no primeiro espaço interno um balcão de mercearia de aspeto antigo. No pano da parede as prateleiras. Mas para quem tivesse sede, esse espaço ligava a outro, nas traseiras. 

 Sou cliente novo, mas vou acompanhado de gente amiga. Atravessámos a mercearia e entramos nesse espaço. Ao centro existia uma mesa de madeira comprida, ladeada de dois preguiceiros a todo o comprimento dela. E ao fundo, nesse espaço das traseiras,  duas TALHAS gigantes de vinho com torneiras. Pipas à maneira do norte? nem vê-las. Que sorte a minha tê-las ali, à minha frente, coisa diferente, até antão,  ausente do meu conhecimento. Uma lição. Professor de história, outra terras, outras gentes guardadas na memória. 

O merceeiro, que era o taverneiro, foi atender-nos. Pôs os copos na mesa, encheu a jarra de vinho jorrado da TALHA e disse: “sirvam-se, quando acabar vão encher novamente”.Assim mesmo. Confiança absoluta nos clientes. Todos sentados, lado a lado, um “companhêro” encheu o copo e passou a jarra. Cada um se serve a si mesmo. O “tavernêro”, que era o “merceêro” foi para a mercearia. Tinha outra clientela. E assim até ao fim. 

Outro “companhêro”, tudo novidade para mim, tirou a mão do bolso e, como quem semeia milho numa leira, espalha grão de bico torrado por toda a mesa e ouve-se o tilintar dele pela madeira adiante. Um instante. Nunca tal tinha visto. Foi pra mim a vez “primêra”. Para mim, ligado à agricultura na mocidade, esse instante volveu eternidade. Vai morrer comigo. Homem feito, vi-me daquele jeito transformado em pintaínho a bicar e a mastigar grão a grão, logo empurrados com o vinho tinto servido da jarra. Tudo entre conversa, riso e algazarra. Boa disposição. Comvívio vivido e são. Ali, nem piada se perde. Estou no Alentejo, terras de Castro Verde. 

Esgotada a jarra, outro “companhêro” levantou-se, rumou em direção à TALHA, rodou a “tornêra”, encheu-a, fez um risco com giz no bojo vermelho da vasilha, parecida com bilha, e  voltou. Honrada gente. Cada jarra esvaziada, da última à “primêra”, correspondia um risco. Isto até ao fim da “bebedêra”. Era assim. Tanta coisa nova para mim. Que calor humano. A cassete rodava no gravador, ali ao lado, e, tanto ano passado, transporta-me à atmosfera vivida naquela taberna, à desbanda de uma horta, e faz-me ouvir vozes dos meus amigos, as vozes de gente morta. 

As contas acertavam-se no fim, sem entrar o petisco, o grão de bico torrado na mesa semeado por lavrador honrado. E do bolso tirado e servido à lavrador eu, professor de profissão, com alguns anos de vida, aprendi ali aquela lição dos livros excluída. Nunca esquecida. Tão natural e social ela foi. Os preconceitos da ASAE e obrigatoriedade de consumir alimentos “emprazados”, em celofane, ou plástico embalados e vendidos, eram coisas do porvir. E hoje fazem-me rir certas patologias ditas em defesa do consumidor, mas que mais não são do que defesa e do intermediário mais do que do produtor. 

A humanidade tonou novo rumo. Estamos na sociedade de consumo.

Hoje em dia, enfim, quem é que comia o grão de bico tirado assim do bolso pela mão do lavrador que teve o cuidado, a gentileza de colocar na mesa, com amor o contributo do seu labor e enriquecer o convívio?

Este texto, escrito longe daquele povo,  é de homenagem a todos esses “convivas” falecidos certamente, pois eu era o mais movo. E, sem ser coisa de monta, conto oitenta anos na minha conta. Memórias mortas. Memórias vivas.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.