PRIMEIRA PARTE
Fraturado assim, é um autêntico morouço de penedos insolitamente coroado por um verdejante e solitário AZEVINHO que, na sua luta pela sobrevivência, contra os ventos, frios, neves, codos de inverno e dos calores da tineira do verão, vivendo as amplitudes térmicas da região, encontrou, nas talisgas desse rochedo, força e vida secular, assumindo laivos de imortalidade.
Antigamente a ligação de Picão à Cruz do Rossão, era feita por um caminho carreteiro que, saído da aldeia, passava pela Fonte da Pedra, assim designada por ali existir uma penedo fraturado que exibia, nas suas faces, algumas gravuras naturais, disformes, errada e temporariamente consideradas gravuras humanas, por académicos menos atentos à morfologia das rochas em redor.
Foi sol de pouca dura. Conhecedor do sítio, atento ao que por cá se vai fazendo e dizendo sobre a HISTÓRIA LOCAL, foi-me mais fácil desfazer esse “erro académico” (em texto e em vídeo) do que despertar os nossos autarcas, Presidentes de Junta, de Câmara e outros, para a humilhante vassalagem que prestam a troco de um «prato de lentilhas», baixando a cerviz aos detentores dos novos domínios senhoriais medievais - os SENHORES DAS EÓLICAS - que, em pleno século XXI, vedam o território, com cancelas ou sem elas, impedindo a livre circulação pela serra que de lés-a-lés sempre foi usufruída pelos naturais ou forasteiros, turistas ou estudiosos.
Dito isto, saiba-se que muito antes de existirem por ali os geradores eólicos que vieram a povoar a serra e proibir que nela se circule livremente, já ele, aquele morouço de penedos coroado pelo AZEVINHO, se levantava do solo e marcava a diferença entre os demais afloramentos rochosos e arbustos nativos em redor. Parecia e parece um eremita solitário a pregar no deserto.
Eu sou um daqueles mortais que ele viu e ouviu. Que sentiu o palpitar do meu coração e o calor dos meus afetos. Algo de Celta prevalece em mim. Gosto do monte, da serra e do vale. Gosto da Natureza. Deslumbro-me com os contrastes do relevo e das cores, da variedade de plantas e arbustos. Cada um, uma divindade. Para mim, é como se atrás de cada penedo solitário, de mil segredos depositário, porque não dizê-lo? estivesse sempre uma maga celta, uma virgem pronta a deixar de sê-lo, exalando o inebriante perfume do rosmaninho, da maia, do feno de todo o ambiente envolvente. É o mundo. É a gente.
Planta decorativa e de folha perene, agressiva, os Celtas usavam-na como símbolo de imortalidade. Os romanos seguiram essas crenças nas suas festas do solstício de inverno, as Saturnálias, festejando os tempos da "Idade de Ouro", o tempo de abundância e de igualdade. Era uma das festividades mais populares em Roma ligada à agricultura. Afinal, a atividade em que me iniciei em Cujó e até aos 18 anos pratiquei, esse meio de subsistência para nós camponeses, pastores e lavradores.
Quando damos voz à SERRA DO MONTEMURO. Quando falamos de pastores, agricultores, caçadores, romeiros, animais, feirantes e gente mais. Quando damos alma, vida e cor a tudo o que nos rodeia, a tudo o que é espontaneamente nosso, eia, a câmara de filmar se encarrega de mostrar, em SILHUETA, o ROSTO HUMANO que perto deste AZEVINHO descansa e passa despercebido ao olho vivo. Único, exclusivo, protegido por lei, condenado à extinção pela natalícia avidez humana, este “ex-libris” montemurano tem agora não só a proteção legal, mas também a garantia de ver afastados de si os ruminantes - as cabras - que outrora o não deixavam crescer e tomar corpo de árvore. Chegou o seu tempo. Protegido por lei e livre desses predadores e podadores caprinos - a folclórica transumância, invenção municipal recente jamais lhe fará mossa - o ramalhete verde-rubro que coroou aquele morouço de penedos começa a levantar a crista e a querer ser gente v.g. a libertar-se da vassalagem a que, durante séculos, noite e dia, estava submetido por tal tirania. Enfim, começa a assumir o estatuto da atribuída IMORTALIDADE e mais seria se, nestes tempos que tudo elevam a PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE, houvesse por perto gente de cultura e sensibilidade que conhecesse a orografia, a geografia, a botânica e a HISTÓRIA LOCAL, enfim que atendessem à sua resiliência num habitat tão adverso, que respeitassem a sacralidade que ele representou a na histórica SAGA HUMANA, desde os tempos pagãos, Celtas, Romanos e Cristãos. Que simplesmente olhassem à sua SINGULARIDADE.