Trilhos Serranos

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sábado, 28 agosto 2021 15:58

FAREJA - CASA DE FÉRIAS

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AS COISAS E AS GENTES

De há uns tempos para cá, tenho interrompido o telejornal das 20 horas, levanto-me do sofá, desligo a televisão e dou corda aos chinelos até Farejinhas, passando a ponte do rio Paivó, aquele que nasce no Monte dos Testos (Cervela) arredores da Relva (Monteiras),  desagua no Paiva, este no Douro que vai banhar-se no Atlântico, a caldeira que liga continentes e gentes.

 

Alfaiate-1TANQUEAli, naquela estrada, logo a seguir ao fontanário que lá foi posto pela Câmara Municipal, em 1943, está a bem talhada frontaria de uma casa, talhe arquitetónico diferente das suas vizinhas. Ali conheci o casal que foi o seu último habitante. O marido era alfaiate e faleceu antes da sua companheira.

Alfaiate-2

A partir de então, a moradia ficou desabitada, entrou em ruínas e dela só resta, coisa que se veja, aquilo que não há semelhante em Fareja, a frontaria, com as suas janelas gradeadas. O varandim frontal das águas furtadas ostenta uma grade de ferro forjado que é um autêntico filigrana dessa arte. Toda a sua fachada marca a diferença das moradias e lojas que lhe estão cosidas. Não fora ela, com efeito,  a moradia de um alfaiate.

Mais abaixo, uma casa de granito com porta escancarada ao nível da estrada, descoberta e sem sobrado. É a casa da PORTA FERRONHA, à qual se liga a lenda do LOBISOMEM que me foi contada pelo meu tio JOAQUIM FERREIRA SOARES, aquela lenda que, depois de publicada por mim num jornal de Viseu, nos anos 80 do século XX, serviu de conteúdo a um programa da Antena 1, salvo erro designado “VOO DO CONDOR”. Deve figurar nos seus arquivos.

O jornalista que prestava serviço nessa delegação da Estação de Rádio, deslocou-se a Fareja e, ao vivo, gravou essa lenda contada pelo meu tio, com aditamento de alguns comentários meus.

FerronhaPubliquei-a, também, mais tarde, no meu livro «Lendas de Cá, Coisas do Além», lenda que acabou repescada por José Viale Moutinho e integra o conjunto de lendas que fazem o miolo do seu «PORTUGAL LENDÁRIO», editado pela Reader’s Digest, primeiro, e, depois, pelo Circulo dos Leitores. Um livro com uma lenda de cada concelho de Portugal, essa é a que dá nome a Fareja e a CASTRO DAIRE.

E mais abaixo ainda fica uma casinha cujos habitantes ainda conheci. Um casal que, fazendo vida lá por Lisboa, não quis morrer sem requalificar o ninho que lhe servisse de “casa de férias”, em tempo delas. E foi assim que, empoleirado entre paredes de granito, sobressai aquele CUBÍCULO que vemos rebocado com umas escadas exteriores e duas antenas de televisão.

Assisti ao seu restauro e vi, algumas vezes, o seu proprietário com o fogareiro aceso no patim a fazer as refeições do dia. Nunca lá entrei, mas disse-me pessoa amiga que os aposentos não têm mais do que 20 m2 distribuídos por uma mini-casa de banho, um espaço para cama e outro para sala de estar, separados por tábuas.

E nessa sala minúscula entrava o mundo inteiro pelas antenas de televisão levantadas no telhado, aqueles que, autênticos documentos históricos ali permanecem firmes e hirtas, as mesmas que recebiam o sinal dos emissores da Lousã e de São Macário. Outros tempos, outras gentes, as mesmas terras.

cubículoParo, escuto e olho. E interrogo-me como seria ter férias ali, naquele CUBÍCULO, empoleirado neste «cu do mundo». Que impulso levaria o casal, com vida feita lá pela capital do país, a requalificar nesta aldeia o ninho, com contador elétrico, televisão e uma sanita?

Nenhum deles tinha raízes sanguíneas na aldeia. Chegaram cá como caseiros de uma quinta e depois, como seres gregários e humanos,  por cá ficaram, fazendo contatos e amigos.

Há uns anos que deixei de os ver por cá.  E há dias reparei que a baixada da energia elétrica estava cortada e estendida ao longo da valeta. E pensei para comigo. Migrantes que foram, que por aqui fizeram vida e amigos terão “emigrado”, de vez,  para o país das férias eternas.

E o CUBÍCULO que lhes serviu de CASA DE FÉRIAS, ainda de pé, seguirá o caminho das suas vizinhas do lado. Ficará em ruínas. E este meu registo será o fotograma do filme que já conhecemos: a «desertificação deste pedaço de Portugal».

Já coloquei no meu mural do Facebook uma foto a que aditei o  comentário que tem todo o cabimento repescar para aqui. Assim::

Nesta casa morou gente ligada ao mundo pela TV. E quando me interrogo como seria viver num CUBÍCULO destes, justificado fica não me incomodar nada com uma TEIA DE ARANHA pendurada numa das janelas do CASARÃO que será herança aos meus filhos, quando chegar o tempo disso».

TUDO PAGO, SEM EMPRÉSTIMOS NEM ENCARGOS. HERANÇA DEIXADA, MAS NÃO HERDADA.

 (CLICAR NO LINK)

https://youtu.be/aZ4IrrYuiww

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.