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quinta, 08 fevereiro 2024 17:39

REVOLUÇÃO NEOLÍTICA (2)

Escrito por 

REVOLTA DOS AGRICULTORES

Na minha crónica anterior, que teve como pretexto negistar  o descontentamento dos AGICULTORES, portugueses e outros, face às “políticas da PAC” e as suas pretensões explícitas de cercarem ou invadirem a capital do “mando e comando” aproveitei o momento histórico da fixação do HOMEM à terra, ao NEOLÍTICO, o salto qualitativo do RECOLETOR a PRODUTOR e, de caminho, com séculos de permeio, a CONQUISTA DE LISBOA aos mouros, em 1147, servindo-me do texto deixado por Osberno, cidadão letrado que integrava as hostes dos CRUZADOS.

 

PRIMEIRA PARTE

Ora, assumindo-me lenhador na FLORESTA DAS LETRAS que, de podão em punho, procura abrir trilhos de pensamento e de conhecimento, tal como o cozinheiro precisa de produtos e ingredientes para cozinhar um bom prato, também eu não dispenso leituras de documentos que me forneçam fios bastantes para a tessitura do pano que pretendo pôr na hansa  do pensamento e da acção.

Daí a necessidade de reproduzir aqui a FOTOGRAFIA que Osberno REVELOU em “escrita alfabética” já que o fio condutor do texto que produzi, visou mostrar a EVOLUÇÃO DA HUMANIDADE, na luta pela sobrevivência, a partir do NEOLÍTICO: agricultura, comércio, indústria, serviços e tecnologias. Disse ele:

LisaboaAo norte do rio está a cidade de Lisboa, no alto dum monte arredondado e cujas muralhas descendo a lanços, chegam até à margem do Tejo, dela separado apenas pelo muro. Ao tempo que a ela chegámos era o mais opulento centro comercial duma grande parte da Europa. 
Os seus terrenos, bem como os campos adjacentes, podem comparar-se aos melhores, e a nenhuns são inferiores, pela abundância do sole fértil, quer se atenda à produtividade das árvores, quer à das vinhas. É abundante de todas ao mercadorias, ou sejam de elevado preço ou de  uso corrente; tem ouro e prata. Não faltam ferreiros. Prospera ali a oliveira. Nada há nela inculto ou estéril; antes, os seus campos são bons para toda a cultura. Não fabricam o sal: escavam-no É de tal modo abundante de figos, que nós a custo podemos consumir uma parte deles. Até nas praças vicejam os pastos. (…) O alto do monte é cingido de uma muralha circular, e os muros da cidade descem pela encosta, à direita e à esquerda, até à margem do Tejo. Ao sopé dos muros existem arrabaldes alcandorados nos rochedos cortados a pique, e são tantas as dificuldades que os defendem, que se podem ter em conta de castelos bem fortificados. (…) Os seus edifícios estão aglomerados tão apertada­mente que, a não ser entre as dos comerciantes, dificilmente se achará uma rua com mais de oito pés de largura. A causa de tamanha aglomeração de homens era que não havia entre eles nenhuma religião obrigatória; e como cada qual tinha a religião que queria, por isso de todas as partes do mundo os homens mais depravados acorriam aqui como a uma sentina, viveiro de toda a licen­ciosidade e imundície (…) . E acerca da cidade  basta por agora o que fica dito».

Uma fotografia assim, feita em 1147, (século XII) sobre a CAPITAL, e porque do CERCO da sua conquista se tratou, levado a cabo pelas hostes de Afonso Henriques coajuvadas pelos CRUZADOS, convém trazer à colação o CERCO a que a CAPITAL esteve sujeita em 1383/1385, (século XIV) a fim de melhor se entenderem as razões que levaram os AGRICULTORES do século XXI a querem entrar portas dentro, sem recurso aos arietes e catapultas.

E como os AGRICULTORES atravancaram estradas e avenidas, mostrando intenção de cercarem ou entrarem LISBOA adentro, fui repescar o retrato escrito que Osberno nos deixou da LISBOA em 1147, data da sua conquista aos mouros. 

SEGUNDA PARTE

E hoje, neste meu labor de desenrolar a fita do tempo e mostrar a relação estreita que sempre houve CAMPO/CIDADE, na sua autosuficiência (primeiro) ou interdependência (depois), trago um retalho de vida citadina lisboeta, na altura do CERCO a que esteve sujeita, na REVOLUÇÃO de 1383/1385, tal como DOLOROSAMENTE “fotografou” Fernão Lopes. Assim:

« (…) No lugar onde  costumavam vender o trigo, andavam homens moços esgaravatando a terra, e se achavam alguns grãos de trigo metiam-nos na boca, sem tendo outro mantimento. Outros se far­tavam de ervas e bebiam tanta água, que achavam mortos homem e cachopos jazer inchados nas praças e em outros lugares.

lISBOA.CAPA-FERNÃO LOPES-20000Das carnes isso mesmo havia em ela grande míngua. E se alguns criavam porcos, mantinham-se em eles1971; e pequena posta de porco valia cinco e seis libras, que era uma dobra castelã; e a gali­nha quarenta soldos; e a dúzia dos ovos, doze soldos. E se almogávares 1972 traziam alguns bois, valia cada um setenta libras, que eram catorze dobras cruzadas, valendo então a dobra cinco e ou seis libras; e a cabeça e as tripas, uma dobra; assim que os pobres per míngua de dinheiro, não comiam carne e padeciam mal. E começaram de comer as carnes das bestas; e não somente os pobres e minguados, mas grandes pessoas da cidade, lazerando 197não sabiam que fazer, e os gestos mudados com fame 1974, bem mostravam seus encobertos padecimentos.

Andavam os moços de três e de quatro anos pedindo pão pela cidade por amor de Deus, como lhes ensinavam suas madres: e muitos não tinham outra cousa que lhe dar senão lágrimas que eles choravam, que era triste cousa de ver; e se lhes davam tamanho pão como uma noz, haviam-no por grande bem. Desfalecia o leite àquelas que tinham crianças a seus peitos per míngua de mantimento; e vendo lazerar seus filhos, a que acor­rer não podiam, choravam amiúde sobre eles a morte, ante que os que a morte privasse da vida. Muitos esguardavam as prezes1975 alheias com chorosos olhos, por cumprir o que a piedade manda, |c cão tendo de que lhes acorrer, caíam em dobrada tristeza.

Toda a cidade era dada a nojo, cheia de mesquinhas querelas, sem nenhum prazer que aí houvesse: uns com gram míngua do que padeciam, outros havendo dó dos atribulados. E isto não sem razão, ca se é triste e mesquinho o coração cuidoso nas cousas contrairas que lhe avir podem, vede que fariam aqueles que as continuadamente tão presentes tinham (…)”

E, depois disso, flagelada com fome, vitoriosa nas mãos do Mestre, veio a tornar-se a CAPITAL DO REINO,  sede da MONARQUIA por DIREITO DIVINO, arrasada pelo terramoto em 1755 (por castigo divino, segundo MALAGRIDA, no seu “Juízo da Verdadeira Causa do Terramoto” (1756) e, depois, espaço onde os nossos intelectuais e escritores encontraram, guarida,  agasalho e projecção do seu múnus.

TERCEIRA PARTE

Posto o que, sem desviarmos a objetiva da nossa câmara, demos um salto para o século XIX e, focando as VIAGENS NA MINHA TERRA, façamos zoom daquelas páginas onde o autor, Almeida Garret,  põe a vista, a inspiração  e o juízo crítico, zurzindo nas opções seguidas  pela “governança”, pelos homens do “mando e do comando”, no evoluir económico/urbanístico. Entremos com ele no mesmo barco a caminho de Santarém. 

santarémtexto«(…) Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e pitoresco anfiteatro de Lisboa oriental, que é, vista de fora, a mais bela e grandiosa parte da cidade, a mais característica, e onde, aqui e ali, algumas raras feições se percebem, ou mais exatamente se adivinham, da nossa velha e boa Lisboa das crónicas. Da Fundição para baixo tudo é prosaico e burguês, chato, vulgar e sensabor como um período da Dedução Cronológica, aqui e ali assoprado numa tentativa ao grandioso do mau gosto como alguma oitava menos rasteira do Oriente.

Assim o povo, que tem sempre melhor gosto e mais puro do que essa escuma descorada que anda das populações, e que se chama a si mesma  por excelência a Sociedade, os seus passeios favoritos são Madre de Deus e o Beato e Xabregas e Marvila e as hortas de Cheias. 

A um lado a imensa majestade do Tejo em sua maior extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar mediterrâneo; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítios consagrados todos a recordações grandes ou queridas. Que outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com esta? Tirado Belém, nenhuma. E ainda assim, Belém é mais árido.

(…)

No entretanto vamos acender os nossos charutos, e deixemos os precintos aristocráticos da ré: à proa, que é país de cigarro livre. (,,,) 

C Abílio-Pátria-RedzFumemos!

Aqui está um campino fumando também grave­mente o seu cigarro de papel, que me vai emprestar lume.

— «Dou-lho eu, senhor...» acode cortesmente outra figura mui diversa, cujas feições, trajo e modos singularmente contrastam com os do moçárabe riba­tejano.

Acenderam-se os charutos, e atentámos mais devagar na companhia em que estávamos.

Era com efeito notável e interessante o grupo a que tínhamos chegado, e destacava pitorescamente do resto dos passageiros, mistura híbrida de trajos e feições descaracterizadas e vulgares — que abunda nos arredores de uma grande cidade marítima e comer­cial. — Não assim este grupo mais separado com que fomos topar. Constava ele de uns doze homens; cinco eram desses famosos atletas da Alhandra que vão todos os domingos colher o pulverem olympicum da praça de Santana e que, à voz soberana e irresistível de: “à unha, à cernelha!...” correm a arcar com mais generosos, não mais possantes, animais que eles, ao som das imensas palmas, e a troco dos raros pintos por que se manifesta o sempre clamoroso e sempre vazio entusiasmo das multidões. 

Voltavam à sua terra os meus cinco lutadores ainda em trajo de praça, ainda esmurrados e cheios de glória da contenda da véspera. Mas ao pé destes cinco e de altercação com eles — já direi porquê — estavam seis ou sete homens que em tudo pareciam os seus antípodas.

Em vez do calção amarelo e da jaqueta de rama­gem que caracterizam o homem do forcado, estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos, e o tabardo arrequifado siciliano de pano de varas. O campino, assim como o saloio, têm o cunho da raça africana; estes são da família pelasga: feições regulares e móveis, a forma ágil.

Ora os homens do Norte estavam disputando com os homens do Sul: a questão fora interrompida com a nossa chegada à proa do barco. Mas um dos ílhavos — bela e poética figura de homem —, voltando-se para nós, disse naquele seu tom acentuado: 

  • Pois aqui está quem há-de decidir: vejam nos senhores. Eles, por agarrar um toiro, cuidam que são mais que nin­guém, que não há quem lhes chegue. E os senhores, a serem cá de Lisboa, hão-de dizer que sim. Mas nós...»

 

—    «Nenhum de nós é de Lisbòa: só este senhor que aqui vem agora.»

Era o C. da T. que chegava.

 

—    «Este conheço eu; este é dos nossos!» bradou um homem de forcado, assim que o viu: «Isto é um fidalgo como se quer. Nunca o vi numa ferra, isso é verdade; mas aqui de Vaiada a Almeirim ninguém corre mais do que ele por sol e por chuva, e há-de saber o que é um boi de lei, e o que é lidar com gado.»

—      «Pois ouçamos lá a questão.

-  «Não é questão», tornou o ílhavo: «mas, se este senhor fidalgo anda por Almeirim, para Almeirim vamos nós, que era uma charneca o outro dia, e hoje é um jardim, benza-o Deus! — mas não foram os campinos que o fizeram, foi a nossa gente que o sachou e plan­tou, e o fez o que é, e fez terra das areias da charneca.»

—      «Lá isso é verdade.»

—     «Não, não é! Que está forte habilidade fazer dar trigo aqui aos nateiros do Tejo, que é como quem semeia em manteiga. E uma lavoura que a faz Deus por Sua mão, regar e adubar e tudo: e o que Deus não faz, não fazem eles, que nem sabem ter mão nesses mouchões com plantio das árvores: só lá por cima é que algumas têm metido, e é bem pouco para o rio que é, e as ricas terras que lhes levam as enchentes.»

- « Mas nós, pé no barco pé na terra, tão depressa  estamos a sachar o milho na charneca, como vimos por aí abaixo com a vara no peito, e o saveiro a pegar na areia por não haver água... mas sempre labutando pela vida.»

—   «A força é que se fala» tornou o campino, para estabelecer a questão em terreno que lhe convinha: «A força é que se fala: um homem do campo que se deita ali à cernelha de um toiro que uma companhia inteira de varinos lhe não pegava, com perdão dos senhores, pelo rabo!...»

E reforçou o argumento com uma gargalhada triunfante, que achou eco nos interessados circuns­tantes que já se tinham apinhado a ouvir os debates.

Os Ílhavos ficaram um tanto abatidos; sem perde­rem a consciência da sua superioridade, mas acanha­dos pela algazarra.

(…)

Mas o orador ílhavo não era homem de se dar assim por derrotado. Olhou para os seus, como quem os consultava e animava, com um gesto expressivo, e voltando-se a nós, com a direita estendida aos seus antagonistas:

—   «Então agora, como é de força, quero eu saber, e estes senhores que digam, qual é que tem mais força, se é um toiro ou se é o mar.»

—    «Essa agora!...»

—    «Queríamos saber.»

—    «É o mar.»

—   «Pois nós que brigamos com o mar, oito e dez dias a fio numa

tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um toiro, qual é que tem mais força?»

Os campinos ficaram cabisbaixos; o público imparcial aplaudiu por esta vez a oposição, e o Vouga triunfou do Tejo”.

 Um mimo, este texto de Almeida Garret. Retrato geográfico, orografico, urbanístico, social e psicológico do PORTUGAL sob a sua alçada de olhar. Complementar do texto de Osberno, eis o “mau gosto”patente no evoluir citadino. Eis o tema e a postura patentes  na “discussão” entre “forcados” e “ílhavos”. Eis o destaque das gentes rurais que, sendo do campo (os campinos) se aproximam, sobranceiramente, das elites sociais urbanas e seus valores. Eis a disputa Norte/Sul.  Eis o Vouga a vencer o Tejo. Eis o “campo/cidade”. Eis Portugal inteiro projetado neste Janus, nesta mitológica figura dos inícios, das mudanças, das transições. 

Escolha o meu estimado leitor o grupo que mais lhe aprouver. Se eu tivesse voz na matéria, teria levado de Aveiro até Lisboa (por mar e terra) o MALHADINHAS, esse almocreve de AQUILINO RIBEIRO que, trilhando os sinuosos caminhos que bordejam o rio Paiva, de lódão em punho, semeava valentia, força e arte, de feira em feira, havidas nas serras do Montemuro à Lapa. Quer dizer, eu interiorizava, ruralizava e gereralizava mais ainda a disputa, a fanfarronice a que aludiu Garret, muito vulgar por este Portugal arriba: “segurem-me, senão eu mato-o”. 

CONCLUSÃO

Daí, neste tempo de eleições legislativas que se aproximam, de debates, de opiniões contrárias, eu ter trazido à memória o memorável Arquiteto GONÇALO RIBEIRO TELES que, em vida sua, sempre defendeu uma evolução ecológica da CAPITAL e, por não ser ouvido, nem seguido, termos a CAPITAL que temos. 

Ora, sendo ele monárquico (não sei se marialva, amigo de touros e forcados) com idade para ser meu pai, e eu republicano, de tanto escutá-lo e respeitá-lo, aqui estou a lembrá-lo. Tal como lembrei na versalhada que publiquei no meu mural do FACEBOOK nos primeiros dias de janeiro de 2024, a propósito da nova AD (PSD/CDS/PPM) que vai a eleições em março p.f.

“(…)

Mas onde está a sabedoria
Essa postura de antigamente?
Aquilo era outra gente
Igual não há, hoje-em-dia.
Dava gosto ver e ouvir o trio
Mesmo com ele discordando
Mas o tempo foi rodando
E perdeu-se honra e o brio.

(…)”

Os AGRICULTORES portugueses e outros têm razão de sobra para chegarem espora aos seus cavalos motorizados. Eles, esses descendentes do NEOLÍTICO, descontentes com a “governança”, conhecem bem os dois ou mais PORTUGAIS” que temos: litoral/interior, urbano/rural, campo/cidade. Digamos, o país de “ilhavos e forcados”.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.