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terça, 09 abril 2024 17:54

NA SENDA DO GADO BOVINO PAIVOTO (3)

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SABER LIVRESCO E SABER DO POVO

Face ao que, de posse destas informações, raças classificadas e traçadas, misturadas, não podia deixar de interpelar-me sobre a relação genética das duas RAÇAS ligadas ao PAIVA.. Qual delas levava a primazia na árvore genealógica, já que a minha experiência de pastor/agricultor se recusava a aceitar sem reserva, a classificação dada, por me parecer que a descrição do GADO VACUM feita no século XVI, “vacas de pequeno porte”, «pouco peso» e muito adaptáveis “ao trabalho”, estava mais conforme com aquelas que, na minha juventude, foram objeto dos meus cuidados no trabalho, no pasto e no parto.

 

TERCEIRA PARTE

CAPA-recenseamentoDonde vinha, pois, esta desconformidade? Prosseguindo nos trilhos da aprendizagem e do saber, constatei  que, no século XIX, mais propriamente em 1870SILVESTRE BERNARDO DE LIMA, médico veterinário de renome, organizou o “Recenseamento Geral dos Gados (…)” em Portugal, “sendo o seu trabalho muito bem considerado e citado no estrangeiro por técnicos da área. Foi um distinto professor e considerado na sua época o primeiro zootecnista português”.  (Internet, Biografia) 

Homem de ciência, especialista em ZOOTECNIA, no RELATÓRIO que produziu deixa claro que, para a classificação das RAÇAS,  teve em conta o seu habitat natural, como sejam as serras. Reporta-se à serra do Caramulo e classifica o gado de CARAMULEIRO. À serra do Marão, e o gado de MARONÊS, não seguindo, porém,  igual critério para a SERRA DO MONTEMURO, a serra que, geograficamente se interpõe entre as duas serras por ele referidas e respetivos habitantes bovinos. Impunha-se, pois,  saber algo mais sobre tais rezes.

E para sabermos, nada melhor que lermos a parte do «RECENSEAMENTO GERAL DOS GADOS», feito em 1870, disponível online, em formato PDF

Vamos transcrever  deixado por Silvestre Pires de Lima na tentativa de deslindarmos as confusões decorrentes da “ciência publicada” e a sua desconformidade com a “ciência empírica” tida e sabida por agricultores e pastores do século XX, herdeiros e/ou continuadores daqueles que, no século XVI, lidaram com o gado bovino de pequeno porte e pouco peso, conhecido por PAIVOTO.

Assim: 

TEXTO.RECOs arouqueses de S. Pedro do Sul (também chamados arouqueses serranos e bois do sol). É a família a mais considerável da raça e à qual se ajustam inteiramente os caracteres monológicos que indicamos. Tem o seu principal solar nas terras de S. Pedro do Sul e em toda a bacia do Vouga, deitando mesmo para alem do Douro até ás abas da serra do Marão.

 Arouqueses paivotos (assim chamados no distrito do Porto). São os grandes arouqueses que trabalham e se engordam n'este distrito, sendo seu principal centro de produção em terras de Arouca e Cambra, e nas que abeiram ao rio Paiva, aparecendo muito bom d'eles por alguns vales de S. Pedro do Sul e Vouzela. Distinguem-se dos antecedentes por terem mais corpo, serem mais pernaltos, e a cabeça não tão espessa e arredondada no chanfro, antes convexa um tanto na cana nasal, atirando no todo para o feitio da dos braganceses.

arte xávegaArouqueses caramuleiros. Habitam para as bandas da serra do Caramulo. São mais maneiros de corpo, têm a cabeça mais curta, larga de chapa, armação também mais curta ê aberta, e um tanto levantada, a cor flava mais carregada, tirante mais a castanho; no seu todo parece esta família como que uma transição do arouquês de S. Pedro do Sul para o serrano mirandês nativo das montanhas da Beira. Os bois arouqueses de qualquer das famílias que indicámos, são tidos e havidos como bons animais de trabalho, robustos e aturadores, não debiqueiros nem mimosos. Os de S. Pedro com os maroneses constituem o gado mais geralmente empregado no pais vinhateiro do Douro, sendo muito apreciado para os carretos nos escabrosos caminhos d'esta região. Os arouqueses grandes ou paivotos figuram como os melhores bois de trabalho no distrito do Porto. Os caramuleiros, esses têm a rija unha e a rija tempera dos bois serranos, e são dextros e ligeiros para as lavouras serranas das circunvizinhanças e para os carretos em maus caminhos d'ahi. Na engorda entram os arouqueses paivotos em competência no distrito do Porto com os barrosões e se não dão rezes tão finas como estes e lhes não preferem, pouco somenos são, sobressaindo-lhes muito pelo peso. Dos da família de"S; Pedro do Sul ou arouqueses serranos faz-se já larga engorda no distrito de Aveiro, d'onde semi-gordos se extraem para abastecer o mercado de Lisboa, indo os mais finos ou mais gordos ao Porto para a exportação» (in «Recenseamento Geral dos Gados», 1870, pp 61-62 – Versão PDF online)

Retenhamo-nos somente nos ditos “arouqueses-paivotos” e na explicação de que tal designação se deve ao facto de assim “ser chamada no distrito do Porto”.

BOIS MARPois fosse. E  acrescenta a seguir que os “arouqueses grandes ou paivotos figuram como os melhores bois de trabalho no distrito do Porto”, afirmação que, comparado tal gado com o PAIVOTO que se ficou pelo MONTEMURO (de pequeno porte e menor peso) não “bate a bota com a perdigota”. Tal descrição combina bem com o  “gado pernalto” de cor da areia (cor flava=trigo maduro)  usado a ARTE XÁVEGA, (fotograma ao lado e acina) do que com o “GADO PAIVOTO” que pelo MONTEMURO se ficou desde o SÉCULO XVI e é muito bem conhecido pelos lavradores da serra que consultei e filmei, nomeadamente o senhor José Maria, do ROSSÃO e o senhor António da Rocha Pedroto Martins dos Braços, que, dizem peremptoriamente, ser o “nosso gado”  “mais pequeno” e «amarelo» que o AROUQUÊS, mais «vermelho», sendo este descende daquele e não o contrário.

Compreende-se.

CAVAQUINHAClaro que desde o século XVI ao século XIX, passaram muitos anos e o gado transumante da serra do Montemuro para as terras baixas de Aveiro e Coimbra, não teria o exclusivo nas deslocações. É de admitir que às mesmas terras afluíssem os gados do Caramulo e da Freita (Arada) e por ali se fariam cruzamentos naturais que vieram a dar as misturas e variantes referidas no RECENSEAMENTO, com alguma e admissível imprecisão na classificação feita. Mas face à “ciência” posta em livro, que melhor podiam fazer os mangas de alpaca a trabalhar nos municípios senão designar os efetivos abatidos nos matadouros com o nome ciêntífico, como referi na PRIMEIRA PARTE?

De resto o rio Paiva, tem dois afluentes que partilham o mesmo nome PAIVÓ, um grafado com assento agudo no “ó” e outro com acento circunfleto “ô”. O primeiro, vindo do monte dos Testos, entre Várzea da Serra e Relva, freguesia de Monteiras, desagua a montante da Ponte Pedrinha e outro que nasce na serra da Arada, no concelho de São Pedro do Sul,  desagua na margem esquerda do rio Paiva, a jusante da aldeia de Paradinha (Alvarenga)”.

Fareja-1989Portanto o adjetivo Paivoto teria forçosamente de colar-se aos animais que viviam na bacia do Paiva, tal como às pessoas, pois “Paivotas” se chamavam igualmente as mulheres que, cultivando linho nas margens do Paiva  iam vendê-lo às FEIRAS DE MONTANHA, ainda no século XX. As mesmas feiras onde o GADO VACUM fotografado, a preto e branco, (cf. Fotos ao lado) de hastes levantadas nada se identifica com o gado AROUQUÊS, de hastes caídas.

As minhas lides com estes animais, no trabalho, pasto e no parto, leva-me a crer que o GADO PAIVOTO, seja pela pelagem mais comprida e crespa, cor da palha seca, seja pelo peso e porte, apresenta uma anatomia mais primitiva, mais adaptado a terrenos montanhosos de fracos pastos, piso irregular, comparado com o GADO AROUQUÊS. E daí a pergunta: qual destes dois ecotipos é o precedente, se tivermos presente a civilização castreja, as ruínas dos castros nos topos dos montes e o modus vivendi pobríssimo dos moradores que viviam nas serras da Lusitânia, em casas terreas, tão condizente com o que dizem Frei Bernardo de Brito e Rui Fernandes sobre os moradores, gados, produções e clima no século XVI? 

feira das vacas-1Eu diria que o GADO PAIVOTO (em claras vias de extinção), de mais quequeno porte e menor peso, é muito mais rude, muito mais serrano, muito mais plebeu, do que o GADO AROUQUÊS, muito mais fidalgo, de maior porte, mais pesado, pelagem nédia e vermelha, cujo sangue parecia correr nas veias da “NOSSA VACA ROXA”. (Cf. texto online com este título).

E enquanto o GADO PAIVOTO, filiado ou não no código genético  das “vacas bravas”  montemuranas do século XVI, rompia as unhas, os casos, (e não raro os joelhos) nos íngremes, sinuosos e pedregosos caminhos e carreiros das encostas da serra, o GADO AROUQUÊS, já num estado avançado de domesticação, século XIX, servia as vinhas do Douro, região que, um século antes,  mereceu as atenções do Marquês de Pombal.

CONCLUSÃO

Frei Bernardo de Brito e Rui Fernandes, ambos do século XVI, sublinham a pobreza da serra, as carências alimentares dos seus moradores, a necessidade de comerem ervas fervidas com leite, pão de centeio, pouco milho e nenhum vinho. Leite, nata e manteiga entravam na dieta dos montemuranos. Casas terreas, todas cobertas de colmo e nenhuma com telha. Gente vestida de burel grosseiríssimo e rústica no seu trato. Nos matos em redor, havia perdizes, galinholas, coelhos e lebres que os serranos íam vender a Lamego, mais carvão e lenha.  Quem não conheceu esta realidade nos meados do século XX?

Em abundância somente “fruitas de espinho”. Gente rija, homens e mulheres. E toda essa realidade geográfica e humana, entre castanhascodos e neves,  chegou até nós.  Quem é que, nado e criado neste nosso tempo, esqueceu o retrato AUTÊNTICO descrito por Bernardo de Brito e Rui Fernandes no século XVI?

Pois. E se tal retrato é autêntico no que respeita à geografia, às pessoas moradoras e seu viver, porque há de o HISTORIADOR omitir as referências “às vacas bravas transumantes”, de porte pequeno e pouco peso, e torná-las as avós de sangue, ascendentes diretas distantes das VACAS PAIVOTAS com as quais  lidou na juventude?

Gado pequeno e robusto, robustos e rústicos eram os povoadores, cujas doenças dispensavam médicos. E longe desses povoadores e seus descendentes, todos aqueles que pelos povoados salpicavam e salpicam ainda as encostas e rugas da serra, agora assobradadas e cobertas de telha, jamais conheceram a obesidade causada por excesso de sedentarismo, de alimentação ou consumo de produtos prejudiciais ao organismo. Certo? Uns heróis. Só falta que um compositor musical, pensando neles, nos antepassados e nos viventes, componha o hino HERÓIS DA SERRA,contrapondo-o ao hino HERÓIS DO MAR que já temos. Foi e é graças a esses HOMENS E MULHERES que se manteve e mantem de pé este pedacinho de Portugal rural. Não me canso de escrevê-lo e de dizê-lo em vídeo.

Mas, para terminar, peguemos novamente nas “fruitas de espinho” nomeadamente, aquelas que chegaram até nós e mereceram o olhar dos eruditos para subirem, humildemente, com dignidade e honra, ao “mare magnum” da Internet. Assim:

A silva (Rubus ulmifolius), o pilriteiro (Crataegus monogyna), a cerejeiracerejeira-brava(Prunus avium) e o azereiro o (Prunus lusitanica), (…) o o abrunheiro-bravo (Prunus spinosa), a grinalda (Spiraea hypericifolia subsp. obovata), a roseira-brava (Rosa sempervirens), a macieira-brava (Malus sylvestris), a pereira-brava (Pyrus spp.), a tramazeira (Sorbus aucuparia), o morangueiro (Fragaria vesca) e tantas outras”.

Ainda que tais não sejam arrolados na lista transcrita, penso que Bernardo de Brito, reportando-se à abundância das “fruitas de espinho” não excluiria o castanheiro, já que de ouriços espinhosos saem as castanhas. 

amoras-2Pois. Mas Diremos que, estando o GADO PAIVOTO em VIAS DE EXTINÇÃO por força do abandono da agricultura e da pastorícia, devido à emigração dos moradores em procura de melhor forma de vida, com raízes fundas e em pleno vigor está a SILVA, (robus hulmifolius) um dos incluídos fruitos de espinho acina referido e abundante em tempos idos.

Abandonados os campos, intransitados os caminhos, eis que pode aplicar-se-lhe aqui o dito de Horácio relativo à Grécia e Roma: “a Grécia conquistada conquistou Roma conquistadora”.   Mutatis mutandis: “o  silvado conquistado conquista  o seu domínio ao camponês conquistador”.

amoras-1

 

E as amoras sisvestres, as “fruitas de pico”  abundam à beira dos caminhos, trilhos ou veredas serranas. E as silvas donas e senhoras dos seus domínios históricos agridem, sem dó, homem, mulher ou criança passantes. 

Cf links em RODAPÉ

 

 

 

 

 

 

Rossão
 https://youtu.be/L3rLnRux_5I?si=57YGK8vEDhOmj_WU

BRAÇOS
  https://youtu.be/IUBeFDWqdtI?si=PWzh3w9v2ieywIh1

 

 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.