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terça, 26 maio 2015 18:40

TETE - NÓ GÓRDIO (5-7)

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TETE - NÓ GÓRDIO (5)

Uma expedição daquela envergadura não se fazia sem mantimentos, sem um número significativo de carregadores, muitos deles escravos fiéis e obedientes como os cães são aos seus donos, ao contrário de  outros que se a esgueiravam na primeira oportunidade, abandonando cargas e encargos. Uma expedição dessas, dizia eu,  não se fazia sem guias experimentados, conhecedores dos dialetos e costumes, conhecimentos advindos, sabe-se lá como, mas, seguramente, relacionados com o livro do comércio de ouro, marfim, escravos e tudo o mais que, no comércio, relaciona terras e gentes e interesses comuns. E também soldados como já vimos acima. 

Metido nessas dificuldades sociais e pessoais, o explorador encontrou a solução numa mulata  residente em Tete, de seu nome D. Francisca Josefa de Moura e Menezes,  provavelmente filha de um homem indiano e de uma mulher negra. Era uma senhora de muitos teres e haveres, inclusive escravas a minerar ouro nas suas terras de Maxinga, condição social e económica que não a dispensava de ser acossada por credores, como sempre acontece com as pessoas de grandes empreendimentos e negócios. 

Tinha essa senhora uma jovem sobrinha, de seu nome Leonarda Octaviano dos Reis Moreira,  e a viuvez do senhor «de La-cerda», Capitão-Mor dos Rios de Sena, explorador das Áfricas, depois de o ter sido nos Brasis, veio mesmo a calhar. Acossada pelos credores, ela viu no viúvo daquela categoria o homem indicado para marido da sobrinha que tratava como filha. E ele, viúvo, viu na D. Francisca Josefa a pessoa indicada para tratar da sua filhinha órfã e o apoio logístico para a realização da expedição, nomeadamente o fornecimento de escravos para carregadores e o mais que fosse preciso. Vistas assim as coisas, negócio feito e não se fala mais nisso, à boa maneira portuguesa. Só dela integraram a Expedição sessenta escravos e quarenta escravas. Estas, para além de suportarem os «carregamentos» à cabeça de pé, tinham, seguramente, de suportar o peso dos homens deitadas. E não estranhem os amigos que me acompanham nesta «picada» eu dizê-lo com toda a frieza. Era assim mesmo. Integrar escravas na expedição tinha esses dois objetivos: levar as trochas e evitar que os escravos desertassem por falta de fêmea. Adiante...

O casamento do explorador com a sobrinha da Dona Francisca fez-se de forma secreta de modo a que as autoridades e o público só tivessem conhecimento dele depois do regresso da expedição. E assim foi, só que, o explorador, casado secretamente em segundas núpcias, regressou morto e a jovem casada, de um dia para o outro, jovem se viu viúva, pronta para outro casamento negociado, pois assim o impunham as leis e os interesses do tempo entre governantes e governados. Mas isso são coisas do porvir.

Tudo a postos, comedorias bastantes, escravos e carregadores disponíveis, soldados armados, ala que se faz tarde. Angola era o destino e pelo meio ficava o reino de Muata Cazembe. Até lá, era longa a caminhada. 

Se chegassem ao destino, feitos os mapas, nomeados os rios, as montanhas e os reinos, retornar-se-ia a Tete e missão cumprida. O «nó-górdio» desse conhecimento tinha sido desenlaçado pelas mãos, pela espada e pelos conhecimentos de matemática de um senhor «de La-Cerda» ao serviço do Rei de Portugal.

TETE - NÓ GÓRDIO (6)

Os amigos estão a ler-me, ou estão a ver um filme de Indiana Jones? Uma fila de escravos e escravas, de carga levada à cabeça e às costas, alguns deles, como vimos acima cedidos ao pela D. Francisca Josefa. Alguns seriam naturalmente fieis, seguidores dos seus senhores, obedientes aos mandos dos seus amos, tal como cães obedientes e agradecidos ao dono pelas refeições que deles recebem. Mas outros, correndo o risco de serem mortos, não deixariam de aproveitar a primeira esquina de qualquer volumoso imbondeiro e «ó pernas para que vos quero», ou, sem ninguém dar por isso, subirem lestamente o tronco de uma acácia e, como macacos, buscarem refúgio  na sua copa florida, por norma morada de cigarras a cantarolarem, dia e noite,  aquela cega-rega ensurdecedora que só em territórios tropicais se ouve. Só quem esteve em África tem essa experiência musical no ouvido. Só quem esteve metido nas matas africanas e teve de abrir caminho à catanada, entende o que digo.  Só quem sentiu a comichão dada pelo feijão macaco, só quem sentiu os aromas misteriosos penetrarem-lhe narinas dentro, só quem sentiu a garganta irritada com aquele pó fininho vermelho das «picadas», pó mais leve que a farinha triga peneirada para fazer pastéis de Belém, tudo em missão de serviço ou em lazer,  mantém vivas sensações que só a morte levará aos que por ali andaram e de lá saíram com vida. 

E que levavam essas trochas enroladas nas cabeças das escravas ou nas costas dos escravos? levavam o material científico requerido pelos objetivos da expedição, levavam alimentos e peças para «ofertas» aos reis dos territórios que teriam de atravessar e outras para comércio com os naturais desses povos. Comecemos pelo científico.

O inventário feito por  Pedro Nolasco Vieira de Araújo, em 8 de Janeiro de 1800, após a malograda expedição, remetido ao Governador-Geral de Moçambique, por Jerónimo Pereira, que substitui o explorador no cargo de Governador de Tete,  identifica as peças que foram levadas e as que se perderam, a saber:

1 Teodolito, com as suas três peças, tudo em latão; 1 óculo grande; 1 óculo pequeno; 1 caixinha com um sextante; 1 agulha de marear; 1 caixinha da agulha de marear; 1 caixinha com pedra de Sevar; dita com estojo; 1 espelho pequeno pregado em tábua; 1 telescópio e uma tampa de óculo; 4 ferrinhos com cabos de pau; 10 parafusos de latão; 1 livro denominado Altas Celestez; 1 relógio grande de algibeira; dois vidos para o mesmo». 

E Pedro Nolasco anota ainda nesse relatório as peças que se  perderam  na «Guerra do Mucongure» da seguinte maneira: 

«Equipamentos da Faculdade de Matemática que levou o dito Governador para o interior de África, de que tomei conta para os fazer conduzir: 1 esfera; 1 caixote com óculo grande de observar; os pés do teodolito, que se perderam, na «guerra do Mucongure».

Mas uma expedição ao interior de África não se fazia apenas com instrumentos científicos. Deles falarei no próximo post.

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Volto a perguntar. Os amigos estão a ler-me ou estão a ver um filme de Indiana Jones? Olhem aquela fila de escravos e escravas. Olhem aqueles soldados de armas prontas a mostrarem o seu poder de fogo contra as azagaias. A bala contra a flecha. Olhem o explorador a assentar o teodolito a tomar apontamentos. Olhem-no, circunspecto, de telescópio virado ao céu a registar o mapa celeste. Trochas à cabeça e às costas prenhes de cetim, chitas, linhas, saias de gagaráz, peças de atalá, agrofados, peças de lenços patavarez, toucas tecidas de missanga, , xerins, espelhos pequenos de papel dourado, espelhos de meio palmo. Tremós com molduras douradas, sombrinhas de Damasco, batuas de arame de lavar, copos de prata pequenos, campainhas de metal branco. E ouro, marfim, comedorias, coral falso, chupa-sangue, (sanguessugas), pedras brancas de leite, pedras azuis, bacias de arame, etc. etc.

E o Feitor, responsável pelas contas que devia prestar do material fornecido à conta da Real Fazenda,  especifica o destino de um tremó, assim:

«1 tremó que vendy a Fazenda Real por 300 cruzeiros com a condição de ser paga a dita quantia ao Espólio se o Cazembe para quem foi a não recompensasse». 

O Cazembe era o Rei do território onde o explorador chegou. E a este respeito os historiadores têm um «nó górdio» a desenlaçar. Para uns o explorador chegou à fala com o senhor do país que o recebeu cordialmente, pois ele, tal como os portugueses, estava interessado na abertura daquela rota conercial. Para outros não chegaram à fala. Concordantes são em dizer que ele morreu ali consumido por febres e que deu ordens ao padre João Pinto para prosseguir a expedição, mas este, em vez disso, resolveu regressar a Tete.

E é na sequência desse regresso que,  o agora Governador de Tete, Jerónimo Pereira, Coronel de Milícias no início da expedição, remete a seguinte carta ao Governador-Geral de Moçambique, em cuja redação se vislumbra o despeito e as desinteligências havidas entre estes dois portugueses sobre esse acontecimento histórico. Vou respeitar a grafia da época, já que  no momento em que escrevo (maio de 2015) não falta por aí quem se oponha ao «Novo Acordo Ortográfico» e berre em defesa o nosso património linguístico, sendo que esse PARIMÓNIO é o que eles aprenderam na ESCOLA PRIMÁRIA

«Ilmº e Emº Sr-

 Conciderando eu que V.Exª queria ter noticia das fazendas particulares que o Governador  Francisco Jozé de La-Cerda e Almeida tivesse levado consigo a bem do seu negocio, como tambem da sua comutassão e outro sim dos instromentos de Sua Magestade que se salvarão e outros se perderão pela sua reversão, juntamente o Espólio do mesmo Governador, ordenei a Pedro Nolasco Vieira de Araujo como procurador do mesmo falecido, me prestasse a clareza de tudo por huma folha inteligivel, em que constase o referido; a qual incluo neste para  V. Exª vir ao seu pleno conhecimento.

DEus Guarde a V. Exª Tete, 9 de Janeiro de 1800

 Hyeronimo  Perª, Gºr.»

Os amigos ficaram cientes? E assim se ia construindo o império e era assim que se escrevia.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.