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quarta, 31 agosto 2016 12:27

CASTRO VERDE - TESTAMENTO - I

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Decorre o mês de março de 1867. É o dia oito. Ele amanheceu limpo e luminoso, permitindo à vista humana, num raio de 50 quilómetros, lobrigar, a olho nu, todos os povos e montes que pintalgam de branco a paisagem alentejana. É só subir ao outeiro mais alto.

Montado no seu cavalo, um árabe de pura raça, ajaezado de acordo com o estatuto social e profissional que possuía, o Escrivão do Juízo Ordinário e Tabelião de Notas no Julgado de Castro Verde, João António Figueira, saiu cedo de casa e dirige-se à aldeia de São Marcos de Ataboeira, respondendo ao chamado de Perpetua Joaquina Carlado, a fim de escrever o seu testamento. Avisado de véspera o criado preparou a montada a tempo e mal o dono meteu a biqueira da bota caneleira no estribo, foi num ai que se viu sentado sobre a sela, mãos firmes a segurar a rédea e..."vamos lá, ó compadre, que se faz tarde!"

 

PERPÉTUA-1 - Cópia -O cavalo já conhecia de cor aquele e outros caminhos em redondo. De ventas viradas a sul, era só soltar-lhe a rédea. No percurso (e dada o mês que corria) viam-se florir as primeiras margaridas à beira dos caminhos e o verde escuro das estevas, pegajoso e balsâmico, começava a ter remendos brancos, um tanto ou quanto envergonhados, mas bem notório nos arrifes que, de longe em longe, sobressaíam na manta verde das promissoras searas que se viam em redondo. Estavam em crescimento e a crescer dançavam a valsa ao sopro da mais  pequena brisa.

Era notório que montados, residência histórica de chaparros e azinhos, eram ainda os senhores da paisagem. Os trigais desalojá-los-iam dos seus domínios, mas isso só aconteceria quando novas técnicas agrícolas mecanizadas, saídas da Revolução Industrial, viessem substituir a lavoura de «tração a sangue», tal qual se dizia no linguajar local para classificar a força animal que puxava a charrua e virava a leiva nessa zona geográfica de Castro Verde, terras de «barro branco», muito menos férteis do que os «barros vermelhos» de Beja e arredores. De quando em vez, lá aparecia  à distância fora de tiro uma ou mais abetardas de pescoço levantado, curvado, periscópio saído do chão, a espreitar o viajante, naquele seu gesto tão natural. O mesmo com o perdigão de férias a atravessar o caminho, deixando à perdiz os cuidados da escolha do ninho e a parte que lhe cabia na reprodução da espécie. As que via tinham escapado à escopeta de carregar pela boca de Manoel Afonso, do Monte Novo, aquele jovem que, 20 anos volvidos (1887) viria a ser dono do um polvorinho feito em chifre de bovino, lavor do mestre João Alexandre de São Marcos, aquele filho de um cabrão que arrancava do canivete todo o lavor que lhe apetecia. Uma autêntica obra de arte. Os nomes do artista e do dono lavrados na base, aquelas caravelas a rodear o brasão de armas, escudo, castelos, quinas e tudo, levara anos a fazer, mas, uma vez acabado, era obra para regalar os olhos de quem tinha o privilégio de o observar, de o possuir ou herdar. É o caso de quem escreve estas linhas.

Polvotinho-Arma-1Cavalo de pura raça árabe, comprado ainda potro numa das feiras de «Crasto» que anualmente tem lugar na vila, no mês de outubro, foi domesticado e ensinado lá em casa. Conhecia melhor os criados e os donos do que os seus irmãos de espécie. E certo era que outras cavalgaduras existiam por ali e serviam de montada. Elas, com selas, com albardas ou sem elas, alombando com os cavaleiros, facilitavam a vida aos seus proprietários, permitiam-lhes vencer longas distâncias no cumprimento de uma obrigação, ida a uma romaria ou a uma feira negociar os produtos agro-pecuários. A alternativa era «pedibus calcantibus». Nesse rol de quadrúpedes entrava o asno, a mula, o macho o mu. E não poucas vezes a serra do Caldeirão ou Mu, fronteira que  separa o Alentejo do Algarve, foi atravessada em cima dessas alimárias a caminho da praia algarvia. Ainda que o macho e a mula fossem os eternos «animais de tiro» e indispensáveis companheiros de almocreves e lavradores.

- «Arre macho»! era a expressão que tanto se ouvia, saída da boca de um almocreve, incitando o animal a subir uma arriba, como de um camponês a balancear os cabrestos agarrado à rabiça de um arado, a preparar a terra de semeadura.

Os tratores de charrua dupla ou simples destinados a virar leiva sobre leiva, de courela em courela, bem como os automóveis de todas as marcas a vencerem quilómetros de estrada, a velocidades nunca vistas nem pensadas, eram «mánicas»  diabólicos do porvir. 

O tabelião, que ganhava a vida agarrado a uma pena de pato, indo onde o chamavam no cumprimento dos seus deveres de ofício, longe estava de ver o futuro e, como que não ligando ao passado recente, à Revolução Liberal de 1820 que trouxe novas leis relacionadas com os direitos de propriedade fundiária, ele, por força da rotina, continuou a usar nos testamentos as carunchosas expressões  que traduziam a relação dos homens com o tempo, com as leis e com a política. Num mundo considerado imutável desde Adão e Eva, nada havendo de novo sob o Sol, fazia sentido as pessoas pensarem que as suas determinações testamentárias valessem «para todo o sempre», «enquanto o mundo durar», «até ao fim do mundo», «per omnia saecula saeculorum».

Sem pressas, rédea solta no pensamento, rédea solta na besta, esta não raro virava a cabeça e estendia o pescoço para ceifar, aqui e além, as fêveras das searas que tinham o atrevimento de inclinar a cabeça para a beira do caminho. Aquele trigo roído assim era entendido como uma espécie de primícias que os proprietários ou rendeiros dessas terras (donos ou enfiteutas)  pagavam ao passante, aquele que, montado numa qualquer alimária, a deixava  alimentar-se em andamento, seguro de não prejudicar quem quer que fosse. Era dos usos e costumes.

Terras planas, mal a primavera dava sinal de chegada, caminhos de terra batida, nas suas margens, rente ao chão, não tinham conta as flores que se estendiam a perder de vista, exalando os seus odores e exibindo as suas cores. Aquela fita castanha, a rasgar distâncias e a unir povos, montes e aldeias, fazia-lhe lembrar uma estola gigante de sacerdote com  brocados de banda saídos das agulhas manejadas por mãos de fada. E o passaredo, que à primavera não fica indiferente, aproveita para alegrar campos, montes  e gente. Há avesinhas que, de tão pequeninas, conseguem rasgar os céus fugindo à vista humana, mas o seu canto, o seu gorjeio, não consegue escapulir-se ao ouvido do tabelião que, no seu andamento sobre a montada ...toc...toc...toc..., apreciava aquela sinfonia alada, aquele canto gregoriano entoado por coro invisível  abancado no templo que tem por teto a abóbada celeste, aquele teto que,  tanto de dia como de noite, à falta de nuvens, é  mais visível no Alentejo.

Matutando consigo próprio interrogava-se sobre aquela alegria primaveril, sempre viçosa e cantante, aquela força que, anualmente, tudo renova e dá vida a tudo o que está morto. E associava tudo isso à profissão que tinha. Absorvendo todo aquele alor de força e vida, ele lá ia, de pena e tinta preparados para lavrar  um testamento, um instrumento igual a tantos outros que já fizera, todos eles prenúncio da morte próxima do testador, clarim de quartel prestes a tocar a silêncio. Um paradoxo. Mas era assim o mundo. E ele não era o único que ganhava a vida com a morte. Com a morte do testador ganhavam também os contemplados no testamento e quantos deles, os beneficiados, cheirando-lhes a isso, almejavam que o benfeitor perdesse o pio o mais cedo possível, forma de mais cedo disporem dos legados.

Lavrados, geralmente,  em fim de vida, a poucos anos da morte certa, eram muitas vezes ditados por pessoas de avançada idade e marcas evidentes de senilidade mental. Mas, por força da lei, neles tinha de constar, obrigatoriamente, que o testador se encontra de «boa saúde e no seu perfeito juízo». No caso presente, não tardaremos a ver que, quer no início do testamento, quer no auto da sua «aprovação», a testadora está «de perfeita saúde e claro conhecimento».

Ele já tinha feito e estudado muitos testamentos. Repassá-los em memória, no vagaroso trajeto que separa Castro Verde de São Marcos de Ataboeira, não é levado pela mão da necrodulia, mas antes ciente de que é através deles, no que neles lê, ouve e escreve, que se penetra nas profundezas da mente humana, no pensamento escatológico de uma época, na forma do pensar, sentir e agir, de cada um dos testadores, aqueles que, gastada a vida, a troco das mordomias e dos bens terrenos que usufruíram à tripa forra, não os podendo levar consigo,  impelidos eram a comprar com eles o descanso eterno, a paz no céu. Para tanto,  toca a distribuir tudo  «para bem das suas almas e descanso de suas consciências».

PERPÉTUA-2 -Ele, tabelião encartado, que passara pela Universidade de Coimbra, que queimara as pestanas debruçado sobre as extensas elucubrações régias plasmadas nas Ordenações sem esquecer os restritos «parágrafos únicos», complementos de alguns artigos insertos nos códigos civis e criminais, bem podia dizê-lo. Ele e os seus colegas de ofício. Disso podiam dar prova os testamenteiros, as testemunhas e todos os contemplados que recebiam bens de monta, herdades, courelas, hortas e vinhas, ou simplesmente uns parcos mil reis de caridade, algum pão distribuído à porta da Igreja Matriz no dia do enterro, ou, ainda, umas missas de esmola, das mais baratas, pois até o preço das missas marcava a distinção social, o estatuto das pessoas,  o grau familiar ou de afeto entre  testador e  beneficiado. E também os que esperavam pelo momento de verem as suas dívidas perdoadas.

Que mundo este! Que esforço tem de fazer o historiador para extrair de um fruto ressequido pelo tempo,  que é um testamento do século XIX,  sumo bastante capaz de  matar a sede do conhecimento ao leitor do século XXI. Somente aquele que tem sede de conhecimento!  (continua)

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.