Trilhos Serranos

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terça, 06 setembro 2016 11:53

TESTAMENTO - CASTRO DAIRE - II

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Aos 77 anos de vida sei haver muitas pessoas que nunca se interrogaram a si próprias sobre a sua forma  de pensar e a agir, o porquê de serem como são e se podiam ser pessoas diferentes. Nunca é, pois, demais tomar o lugar do arqueólogo, reticular o campo arqueológico das mentalidades, descobrir e refletir sobre os moldes encontrados que resistiram à erosão do tempo e trazer à superfície do quotidiano por nós vivido, os artefactos que nos informam do passado e nos ajudam a entender quem somos e de onde viemos. Quem foram os oleiros que aqueceram o formo, quais os que moldavam o barro e que beneficiavam com a obra produzida.  Alguns dos artefactos encontrados, nesse  campo arqueológico; são bem os escopros que ainda hoje, tempo da Internet, twiter e Facebook, riscam o pensar e agir de tanta gente adulta, culta e inculta. Não é, pois, demais insistir nesta matéria, acompanhados pela pena tabeliónica de profissionais encartados, com formação universitária e ao serviço de El' Rei.

Hoje trago ao vosso conhecimento o TESTAMENTO de ANTÓNIO DUARTE MORGADO, da aldeia do Vilar, freguesia da Ermida, concelho de Castro Daire. E dele sublinho a visão que o testador  tinha do TRIBUNAL que o esperava no outro mundo, uma cópia grosseira dos tribunais que existiam neste, com advogados vários e um juiz supremo, um tribunal temível, assustador. Ora façam o favor de se informarem: 

 VILAR -1 -REDZ«TESTAMENTO DE ANTÓNIO DUARTE MORGADO, DO VILAR-ERMIDA»

 «Jesus, Maria José – em nome de Deus ámen. Eu António Duarte Morgado, morador neste lugar do Vilar, freguesia da Ermida, julgado de Castro Daire, estando gravemente doente, mas em meu perfeito juízo que Deus foi servido dar-me e temendo a morte, quero fazer o meu testamento e disposição de minha última vontade e, com efeito, o faço pela maneira seguinte = Primeiramente confesso que sou cristão, professo a lei de Jesus Cristo e creio em tudo quanto crê e nesta fé e crença protesto com a ajuda do mesmo Senhor viver e morrer. E peço e rogo à Virgem Nossa Senhora Maria Santíssima, mãe de Deus e Mãe dos homens, seja minha advogada e intercessora perante aquele supremo Juiz, seu amado filho, naquele tremendo tribunal quando minha alma ali for apresentada ao Santo do meu nome, Anjo da minha guarda e a todos os mais santos da corte do Céu sejam meus advogados naquele dito tribunal para que a minha alma vá gozar a bem-aventurança para que foi criada. Deixo que em Deus sendo servido levar-me desta vida para a outra, seja sepultado dentro da Igreja onde sou freguês  e que por minha alma se me digam quatro trintários de missas e por alma do meu pai e de minha mãe um trintário; por penitências mal cumpridas, cinco missas;  pelas almas do Purgatório três missas; à Nossa Senhora do Fojo, oito missas, para que seja minha medianeira para com seu amado filho; por alma da minha irmã Maria, quinze missas e por alma de meu sogro e minha sogra, vinte missas, enquanto de espiritual tenho disposto; enquanto ao temporal: deixo e nomeio o meu Prazo ao meu filho José e a este nomeio por testamenteiro para me cumprir o meu bem de alma acima declarado dentro de um ano do meu falecimento e à custa da herança dos bens livres que será a despesa dele repartida por todos os meus quatro filhos que instituo por meus universais herdeiros e dado o caso que não queiram concorrer com esta despesa do bem da alma e direitos da Igreja, neste caso o meu filho José levantará o terço dos bens livres e por ele pagará tudo bem de alma e direitos paroquiais, cujas missas acima declaradas serão ditas por uma vez somente. E serei sepultado na capela de Santa Bárbara deste lugar como é de costume e não na Igreja. E por esta maneira hei este meu testamento proferido como firme e valioso em juízo e fora dele, tanto quanto em direito se requer e por este revogo quantos tiver feito antes deste, pois só quero que este valha como sentença de minha última vontade e por não poder bem escrever por causa da minha moléstia roguei a Luís de Sousa e Vasconcelos, de Vila Seca, freguesia de Pinheiro que este meu testamento me fizesse ou escrevesse conforme eu o ditasse e comigo assinasse, o qual eu de seu rogo o fiz e assinei com ele testador, aos dois dias do mês de Fevereiro de mil oitocentos e cinquenta e três anos. António Duarte Morgado. A rogo do testador Luís de Sousa e Vasconcelos. 

 Adição: depois de escrito, lido este testamento, lembrou-se este testador que se não tinha declarado a natureza do Prazo que atrás fica nomeado ao filho José, por isso o declarou depois. É direto senhorio dele o fidalgo Pamplona da Boa Vista a quem é foreiro, e também esqueceu nomear os nomes dos filhos que são: José, Catarina, Raquel e António. E de tudo fiz esta declaração que ele testador assinou comigo, era ut supra.»

 Na «Aprovação» do testamento, validado pelo tabelião António Cardoso de Figueiredo Menezes, de Castro Daire, foram testemunhas José Ribeiro da Costa, casado, cirurgião, do lugar de Baltar de Cima; José Rodrigues Matias, casado, lavrador; João Valdige, solteiro, lavrador; José Valdige, solteiro, lavrador e Manuel Saraiva, casado, lavrador, todos os quatro deste do Vilar.

 Termo de abertura:

 Certifico em como no dia onze deste corrente mês de Fevereiro de mil oitocentos e cinquenta e três pelas dez horas da manhã  me foi apresentado o testamento de António Duarte Morgado do lugar do Vilar, freguesia da Ermida para que eu o abrisse o qual eu abri e li diante de duas testemunhas José Valdige e Manuel Saraiva, deste mesmo lugar e não achei nele borrão e nem linha e nem entrelinha nem coisa que dúvida fizesse. As testemunhas viram que ele estava fechado e lacrado e aqui assinaram comigo. Vilar, onze de Fevereiro de mil oitocentos e cinquenta e três. Testemunhas: José Valdige e Manuel Valdige. O Regedor, José Rodrigues Matias». (In Livro II das Cópias dos testamentos – 1852 – fls 39v-42r

Leram tudo e bem? Repararam na caterva de advogados (a Virgem Santíssima, o Anjo da Guarda e todos os Santos da Corte Celestial, sem esquecer a Nossa Senhora do Fojo) que o testador arrola para, lá "naquele tribunal tremendo" que o esperava, presidido por "aquele supremo Juiz" assumirem a defesa da sua alma por "penitências mal cumpridas"? 

O pagamento da defesa ficava assegurado com o rol dos "bens espirituais" arrolados e o seu cumprimento ficava garantido com os "bens temporais", devidamente descriminados. Um deles era o "PRAZO" que tinha como "directo senhorio o fidalgo Pamplona da Boa Vista a quem é foreiro".

Ainda se lembram o que são "Prazos"? 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.