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ESTRADA ROMANA À ILHARGA DE CASTRO DAIRE
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Menino ainda, não tinha desculpa possível para me recusar a ir onde quer que fosse mandado, alegando desconhecer o sítio: «quem tem boca, vai a Roma», «todos os caminhos vão dar a Roma» eram as frases que sucediam à minha hesitação e confirmavam, depois, o sucesso do recado cumprido. Mas, se cedo aprendi o significado de tão «sábias» expressões, tarde soube que elas eram o fruto de muitos séculos do Império Romano, onde se incluía o território que viria a ser Portugal.
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Conquistadores de terras e nações situadas em torno do Mediterrâneo, já no século III antes de Cristo ser gente, eles impunham o mando na Península Ibérica, donde só saíram no século V da Era Cristã, corridos que foram pelos «bárbaros», também eles conquistadores.
Eu não sabia nada disso, nem o sabiam, tão pouco, as pessoas que usavam tais palavras e, ainda hoje, não correrei grande erro se afirmar que muita gente familiarizada com essas expressões, o não sabe também. Associam Roma ao Papa e isso lhes basta. Não têm a mínima ideia da rede de estradas que rasgava todo esse Império, unindo províncias, cidades e vilas, entre as quais a de Castro Daire, como se vê no excerto do mapa (linhas pretas) da responsabilidade do Professor da Universidade de Coimbra, J. Alarcão, inserto na «História de Portugal», I volume, Publicações Alfa, que para aqui transladei, via scaner.
É verdade. Por aqui passava uma estrada romana e disso é prova o troço que resta na encosta que ladeia, do lado poente, o morro em cujo topo o «crasto» teve o seu início.
Há uma vintena de anos, o poder autárquico local, presidido pelo Dr. César da Costa Santos, por força de satisfazer as necessidades básicas das populações, não hesitou em esventrá-la, abrir uma rota a todo o seu comprimento e estender nela a canalização que a modernidade, o bem estar e a higiene pública impunham e reclamavam há muito tempo.
Vá lá, houve o bom senso de repor as lajes, puídas pelo desgaste do trânsito, do tempo e da história, no devido lugar e, não fora as tampas das caixas, em cimento, deixadas à superfície, mal se daria pela obra feita.
Tive conhecimento, através Dr. José Manuel Santos Ferreira, actual vereador encarregado das águas, da pretensão do Executivo Municipal querer proceder à substituição dessa velha e gasta canalização de água e esgotos, acrescentando mais uma destinada às águas pluviais, tudo em PVC, obra que vai mexer em todo aquele troço. Que fazer, pois, de modo a preservar o passado e a não inviabilizar o futuro?
São poucas as terras de Portugal que dispõem de um troço de estrada romana com a extensão daquele que nós dispomos, mesmo à ilharga da vila, para nos darmos ao luxo de não tentar recuperá-lo, preservá-lo e torná-lo objecto de atracção cultural e turística, à semelhança do que têm feitos outros, por toda a banda, inclusive os actuais habitantes de Roma, como muito bem demonstra a foto de L. Von Matt, inserta no livro «Grandeza e Decadência de Roma» (III volume), de Guglielmo Ferrero, foto do trecho da «Via Ápia» que aqui reproduzo, com a devida vénia.
Sensibilizado para isso me pareceu, assim, o actual Executivo, na pessoa do vereador, Dr. José Manuel. Faça-se, pois a obra do futuro. Que o novo projecto de saneamento contemple a recuperação da velha estada romana, deste naco de História Local, em nome do desenvolvimento sustentado do concelho, certos de que «um povo sem memória, é um povo sem futuro».
«Todos os caminhos vão dar a Roma». À Roma dos imperadores, dos Césares, de Pedro, o Pescador, cidade nos últimos dias capital do mundo, mundo pequenino, compadecido com o sofrimento, a agonia e a morte de João Paulo II, o Papa peregrino, que outra dimensão e sentido deu a esses caminhos. Com ele Roma ia a todo o lado. Porém, que caminhos escatológicos é preciso rasgar e trilhar no mundo, até que os cristãos - ao fim de que Pontificado - por força da sua crença vivida e sentida, em vez de chorarem a morte de um ente querido, sabe-se lá um santo, cantem a alegria de o ver entrar no céu e «sentar-se ao lado Senhor».
«Caminhos» se dizia, então. Nome adequado à rede de comunicações terrestres que chegou até nós, desde esses e anteriores tempos. Porém, o estatuto de «caminhos» foi dando lugar ao de «estradas reais», «estradas nacionais», «auto-estradas», «vias rápidas» e «IPs».
Aqui perto, na IP3, também à ilharga da vila, do lado do nascente, já se ouve o ensurdecedor galopar dos potentes cavalos ocultos nos motores dos camiões e dos automóveis da mais variada gama. Ali, sem sela nem espora, cavalga e roda da vida moderna a alta velocidade. Aqui, na velha estrada romana abandonada, o silêncio de morte só é interrompido pelo rumorejar das águas do Paiva e pelo gorjeio dos passarinhos que esvoaçam por perto.
Faça como eles, caro leitor. Desprovido fisicamente de asas, esqueça, por momentos, as preocupações e ruídos hodiernos e deixe voar o seu pensamento e as suas emoções até ao passado longínquo. Fixe a fita do tempo. Veja o filme cujos protagonistas não tardará a identificar: Romanos, Bárbaros, Cristãos, Árabes lutando sucessivamente pela posse, pela conquista, pelo domínio da terra, essa eterna fonte de riqueza e de cobiça! Patrícios, nobres e plebeus, cavaleiros e peões, lavradores e pedintes, romeiros e feirantes, pastores e rebanhos transumantes da serra da Estrela para o Montemuro e vice-versa, ajudaram a puir estas lajes abandonadas que hoje pisa e contempla. Mas cada laje destas é uma página escrita de História e de vida. Sabe lê-las? Naturalmente, tanto mais que é um adepto dos programas televisivos do Dr. José Hermano Saraiva e, como assinante da TVCabo, é frequentador assíduo do canal «História». Não é? Enganei-me? Será que, neste nosso universo sideral, nacional e cultural do século XXI, pertence à constelação da bola e entre dois programas emitidos à mesma hora, um de história e outro de futebol, abandona o primeiro e opta pelo segundo?
Cada um tem o direito de optar por aquilo que lhe dá gozo, por aquilo que mais o enriquece ou que mais satisfaz o seu ego de ser vivente. Cada um tem o seu direito de escolha. Porém, uma coisa é certa: se foi a segunda opção que tomou, então a matéria de que trata este artigo tem muito pouco a ver consigo. A si, desde que a SPORT TV lhe dê assunto futebolístico para discutir durante a semana inteira (e dá, seguramente), tanto se lhe dá que a velha estrada romana seja convertida num postal turístico disponível, ou que, nas suas entranhas, deslize, às voltas e voltinhas, o intestino do burgo vilão até à ETAR, no Paivó, a poucos metros do Paiva, onde evacua a repulsiva e conhecida matéria fedorenta. Tanta, tanta!
Opções de vida! E que trilhos, que veredas, que estradas temos, colectivamente, de percorrer até entendermos que podemos chegar a Roma e a outras partes do mundo culto e civilizado pelos mais diversos caminhos.
A velha estrada romana recuperada, como parece ser vontade do actual Executivo, conviverá pacificamente com as SCUTs, essas vias rodoviárias modernas, concebidas para que as terras de todo este interior beirão e transmontano saiam do atraso e do estado a que foram votadas.
NOTA 1- Cf. «Notícias de Castro Daire» de 10 de Abril de 2005
NOTA 2 - Crónica publicada no meu velho site «trilhos-serranos.com», migrou, hoje mesmo, e com toda a oportunidae, contra todos os «oportunistas», para este meu novo site «trilhos-serranos.pt», a propósito da tão badalada ESTRADA NACIONAL 2. E fica a pergunta: que fizeram os autarcas do concelho desde 2005 até este ano de 2020 com vista a salvaguardar esse troço de estrada? Eles e todos os acólitos subsídio-dependentes que enchem a boca e páginas do Facebook a falarem de TURISMO e das potencialidades da serra do Montemuro e do Rio Paiva e FOLCLORE sem raízes históricas?
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