Trilhos Serranos

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segunda, 11 janeiro 2021 15:02

TACO ARTESANAL

Escrito por 

LAR DOCE LAR

No monte de lenha arrumada nos fundos da minha casa, com destino a subir à lareira e fazer brasa, neste tempo de confinamento e de frio, encontrei um TACO DE MADEIRA feito por um dos meus filhos quando, noutra idade, esta casa era a sua morada.

1-taco-1De aspeto marcadamente artesanal, o artífice, de pouca idade, não cuidou da sua estética formal, mas, vê-se bem, somente cuidou da função que lhe advém. E o seu irmão, que também existiu seguramente, ou pereceu comido pelo bicho, ou escondido está entre a lenha empilhada, pronta a ser queimada, à espera de ser descoberto. Dois irmãos eram, dois tacos, por certo, ambos fizeram.

2-A RESTAURARNão. Um documento destes, vindo à luz dos meus olhos, caído na minha mão (olhem onde!) nunca seria reduzido carvão e cinzas, mesmo que eu de frio tiritasse e moresse. As chamas e o calor que dele emassem ardendo, breves que fossem, duradouro tormento seria posteriormente, pois queimá-lo era como que queimar a imaginação e a arte postas no seu desenho, no seu corte, queimar a execução e animação do jogador que o fez e o usou, um filho meu. Era apagar a ideia subjacente à sua feitura e desvalorizar a necessidade que exercitou a mente a fabricar o que fazia falta para desporto e distração, em tempos diferentes dos que vieram por bem.

Não. Objeto morto e sem uso, no monte de lenha perdido, pelo bicho visivelmente corroído, não seria o pai que reduziria a carvão a imaginação e a obra de um filho. A isso me escuso. Qual deles foi, eu não sei, nem me interessa. Mas, omessa,  sei que foi um deles.

3-RESTAURADOLimpo e posto na bancada, assim, à maneira de quem escreve um poema, livre ficou do pó, do bicho e da fogueira. Limpei-o, fotografei-o, tratei-o e, em vez de queimá-lo, decidi preservá-lo. Original, sem igual no mundo da tacaria, é um documento que tem para mim o significado profundo que em mim porfia, nesta atitude profana, em ver nas ferramentas e objetos a nossa extensão humana. Quantas tacadas deu? Quanto tempo distraiu o seu utilizador? Sei lá! Quantos gritos de satisfação após cada tacada certa, ou finta ao adversário? O passado, uma pinta no calendário da vida.

Acompanhei, com gosto e empenho, o seu início no desporto do “hóquei em patins” em Castro Verde, treinados por um senhor retornado de Angola, experiente nesse desporto e muito estimado pela juventude. A ele se deveu o começo de tal arte naquele concelho alentejano, e treinador foi dos meus filhos. Deslocados para Castro Daire, na idade de ENSINO PRIMÁRIO, à falta de campo no concelho onde praticassem, os patins e a rodela só rolaram, por algum tempo, no reduzido espaço da varanda ladrilhada onde habitámos e depois no pátio e varanda de granito da velha/nova moradia reconstruída. É a vida. E os patins ficaram cá, em casa, para memória, mais o taco artesanal que agora achei, para documentarem a história.

4-EXPOSTODito isto, aqui chegados, sem campo para treino e sem lojas comerciais onde se adquirissem os tacos (na sociedade de consumo só se vende o que se consome) não faltavam em casa ripas de madeira que sobraram da reconstrução da velha moradia. E vai daí, riparam da imaginação, mãos no serrote e tesoura de cortar zinco, martelo e arestas disponíveis, em menos de nada tinham TACOS para fingirem ser jogadores de hóquei em patins, a rolarem por toda a superfície plana, dos arredores.

Não fui ouvido, nem achado para isso. Mas achei agora este TACO abandonado, furado do bicho, no meio da lenha destinada à lareira. Ele trouxe-me à memória esses tempos idos e, que mais não fosse, por tudo quanto lembrava e dizia, para o fogo é que não ia. E se eu nada tive a ver com a sua feitura, algo podia acrescentar ao acabamento e formosura. Aparar as esquinas com grosa, cobri-lo com uma camada de verniz, pregar-lhe umas brochas amarelas onde fossem notadas e preservá-lo como documento de um tempo em que as crianças, meninos espertos e ledos, tinham de fazer os brinquedos que, abandonados, se tornaram lembranças e documentos desse tempo, neste tempo solitário de frio, peste e confinamento.

Recuperado, assim, este TACO artesanal foi exposto em lugar (des)tacado e mereceu que sobre ele eu, nestas atitudes que são muito minhas, escrevesse (e com ele ilustrasse) estas linhas.

 
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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.