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domingo, 12 outubro 2014 15:30

BRINQUEDOS E JOGOS TRADICIONAIS

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 «PÕE, RAPA, TIRA, DEIXA» - 1

Nos meus tempos de criança, qualquer terreiro da aldeia ou troço plano de caminho serrano, podiam servir de tabuleiro ao nosso jogo do "RAPA, TIRA, DEIXA E PÕE". As peças do jogo eram pedrinhas recolhidas nos montes e que guardávamos religiosamente nos bolsos, juntamente com uma piasca de madeira com quatro faces e uma letra escrita em cada uma delas.

 Para o jogo se iniciar cada um dos jogadores tinha de colocar uma pedrinha no "tabuleiro" e, feito isso, tirava-se "à sorte" para sabermos qual de nós devia começar. 
Escolhido o felizardo e assente que estava jogarmos todos, um de cada vez, agarrávamos na piasca e, servindo-nos dos dedos médio e polegar (os mesmos que serviam para tocar castanholas) apertávamos-lhe o "rabo" e fazíamo-la rodopiar sobre o bico. Acabado o movimento, caída no chão, a letra virada para o ar, à semelhança do jogo dos dados (objectos que nós ignorávamos) dizia o que fazer:

R=rapa=ganhar tudo.
T=tira=tirar uma pedrinha apenas e passar a piasca ao parceiro.
D=deixa=deixar tudo e passar a piasca.
P=põe=pôr uma pedrinha no tabuleiro e passar a piasca.

E assim por diante, até nos cansarmos. Uns chegavam a ricos, outros à situação de falidos. Os ricos davam mais que fazer às mães, tornando-as mais pobres, pois os forros dos bolsos, com o uso, nem sempre aguentavam o peso do tesouro e o remédio era cosê-los de novo. E as pedrinhas não eram propriamente pedras polidas do rio, do feitio de amêndoas. Não eram, não senhor.
Jogo de crianças, não sei porque carga de água me lembrei dele, neste ano de 2014, com 75 de idade feitos.
Mas talvez seja porque certos homens de tamanho físico, moral e ético das piascas (piasca=pião pequenino) se dediquem a esse jogo, sem respeito pelas regras sociais: põem, tiram, rapam e não deixam, com uma desfaçatez que mete nojo a todo o homem de bem.

 «PÕE, TIRA, RAPA E DEIXA» - 2

 Mas para que nada fique oculto no baú das minhas recordações acerca deste tradicional jogo popular, devo acrescentar que havia mais duas modalidades no que respeita ao objecto dito "piasca" e ao material a que recorríamos para entrarmos no jogo.
No que respeita às «piascas» nem todas elas tinham as quatro faces e as quatro letras que referi no texto anterior. Piascas havia que eram redondas, feitas das orelhas dos carrinhos de linhas, então em uso. Todos eles de madeira e com os quais fazíamos alguns brinquedos, um deles era este, mas havia mais. Um dia falarei deles.
Neste caso, acabadas as linhas, separavam-se as duas orelhas e metia-se um pauzinho apropriado no orifício central de cada uma delas. Em três tempos estavam feitas duas piascas para rodopiarem no chão ou em cima de uma tábua, à força e jeito do jogador. Redondas, postas em movimento, imobilizadas logo depois, sem faces para sobre uma delas estabilizarem, nem letras PTRD, o ganhador, o campeão, rapaz ou rapariga (o jogo era comum aos dois sexos) era aquele ou aquela que as fizesse rodopiar mais tempo. Vejam só, já nessa altura, no nosso conceito de crianças, o «tempo era dinheiro», o tempo era a medida do nosso «ganho» e das nossas «perdas».


Estas piascas tinham sobre as anteriores, isto é, sobre as das quatro faces uma vantagem considerável. O forro dos bolsos das nossas calças não se rasgavam tanto e as nossas mães ou irmãs pegavam menos vezes na agulha e no dedal para lhes dar conserto.
Mas a imaginação não tem limites e à falta de carrinhos de linhas vazios, recorria-se a um botão grande e, fazendo jus ao ditado "o que esquece ao demo lembra às crianças", os quatro furos existentes no centro do botão davam lugar a um só e neste se metia o tal pauzinho aguçado a golpe de navalha. Uma piasca feita "enquanto o diabo esfregava um olho". E também com este modelo de piasca o tempo era o dinheiro em jogo. Mais tempo a rodar, mais medalhas olímpicas de campeão ou de campeã.


JOGO DOS BOTÕES

Mas os botões, não importava que tamanho, todos serviam para fazer outro brinquedo bem divertido e que nenhum de nós se dispensava de transportar nos bolsos para entrar na competição dos «zumbidos». 

Era assim:

BOTÃO-JOGOPassava-se uma linha num dos furos do botão, voltava-se a fazê-lo passar no furo ao lado, fazia-se uma laçada de palmo e picos para cada lado e com o botão no centro da laçada, dedos metidos nos extremos, baloiçava-se o conjunto no sentido horizontal por forma a torcer o fio. Depois era só esticar e encolher. O botão "em constante movimento" zumbia que nem abelha invisível a cortar o ar a caminho da colmeia ou em direcção de flor à procura do néctar.

Isto em jogo de entretenimento solitário, pois a coisa mudava de figura e de som, quando se juntavam dois, três ou mais ao despique. Todos puxavam pela sua "guitarra" e, no seu estica/encolhe, o zumbido dos botões, correspondente ao tamanho e ao comprimento da laçada, bem como ao jeito do possuidor, fazia tal sinfonia que só tinha paralelo à frente de uma colmeia a ver o enxame na sua azáfama de vida.

E como muito bem disse a minha amiga Herundina, natural das Monteiras, aldeia próxima da minha, tratava-se de "brincadeiras integradas, interagindo com toda a criançada. Hoje, as brincadeiras são solitárias, apenas com um aparelho eletrônico, onde somente se ouvem sons virtuais. A modernidade nos tornou isolados".
Mais palavras para quê? acrescento eu

O CARRINHO DE LINHAS

Prometi, em texto anterior, que escreveria sobre os brinquedos que nós fazíamos com os carrinhos de linha vazios, aqueles carrinhos de CARRINHO DE LINHASlinhas, todos de madeira, dos meus tempos de criança. Um desses brinquedos era a PIASCA de que já falei na sequência do jogo do RAPA. Um outro era o "carro de corrida" que se deslocava no chão autonomamente depois de se lhe corda bastante.

Então como era? 

O material necessário para fazer esse brinquedo era o seguinte:

1 - um carrinho de linhas vazio.
2 - uma rodela de sabão com o diâmetro inferior ao da roda do carrinho.
3 - um elástico
4 - um palito de fósforo.

De posse deste material, havia que conhecer a mecânica de "fabrico" e ter habilidade e perícia bastante para levar a tarefa avante com sucesso. 

Metia-se o elástico por dentro do carrinho, preso numa das extremidades por um pauzinho atravessado numa ranhura aberta para o efeito no exterior da roda. Na outra extremidade do carrinho passava-se o elástico num orifício aberto na rodela de sabão e, feito isso, atravessava-se nele menos de metade do palito de um fósforo, por forma a que a rodela de sabão ficasse justaposta e apertada de encontro à roda. 
Depois era só dar-lhe corda, isto é, segurar o carrinho pelo lado da rodela de sabão e do fósforo na palma da mão e rodar o carrinho até torcer o elástico completamente, mas sem o partir, tal qual a corda de um relógio.

A seguir, com tacto e jeito, punha-se o carrinho no chão e, com a corda toda, era vê-lo correr autonomamente caminho adiante, ou seja, deslizar até se destorcer o elástico que, no acto de destorcer, fazia do palito a força motriz do engenho, arrastando-o pelo chão adiante.

Mas atenção, "fabricar" um carro automático destes não era tão fácil como pode transparecer desta minha explicação. Experimentem e logo ficarão a saber qual a função do sabão que, propositadamente, não referi. Experimentem, experimentem. Façam o favor de, por algum tempo, darem descanso ao polegar. Olhem que vale a pena, aprender a fazer "coisinhas" destas, os brinquedos dos vossos avós e bisavós.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.