Trilhos Serranos

Está em... Início Memórias O PASTORINHO E OS LOBOS
quinta, 09 abril 2015 20:09

O PASTORINHO E OS LOBOS

Escrito por 


1 - DIA DE NEVOEIRO


Um dia, um daqueles dias de nevoeiro, ora denso ora esfarrapado, acompanhado por chuvinha de molhar tolos, coube-me a mim levar o gado à serra. Moço de 10 para 11 anos de idade, capucha metida na cabeça, eu aí vou afoito a dar conta do recado para os lados do Picoto. Não fui para longe. Abriguei-me da chuva encostado ao penedo do Corucho. As cabras e ovelhas andavam perto. Encolhido de frio, nas redondezas não piava pássaro, nem ladrava cão. Só o tilintar das campainhas penduradas no pescoço das cabras e ovelhas rompiam o manto de nevoeiro, cada vez mais cerrado, cada vez mais um livro aberto onde eu lia narrativas de terror e medo.

Chão de mato roído, o gado lambisca a erva molhada  que atrevidamente aflora do solo. Nos giestais próximos meia dúzia de pegas grasnam sem cessar. O nevoeiro tolhe-me a visão. Mas elas não se calam. Mau agoiro. Tinham razão. De repente ouço o tilintar da guizalhada e vejo o gado tresmalhar-se sem direcção. Não deu tempo para mais. À minha frente, a dois passos de mim, está a razão de todo aquele alvoroço: um lobo. Um bicho de respeito. Cauda a varrer o chão, na ânsia de arranjar o jantar, em pleno dia, a coberto do nevoeiro, veio a direito e mostrou bem ao que vinha. Obedecendo a um impulso instintivo levantei os braços e procurei gritar, dar sinal que estava ali gente, atemorizá-lo, mas fiquei tão mudo quanto o penedo que me abrigava. A voz não me saiu da boca. A fera, que viu o meu gesto, não pensou duas vezes. Deu às de vila diogo e, creio que tão assustada quanto eu, sumiu-se tão rapidamente como apareceu. Mas eu é que não estive para mais contemplações. Juntei o gado, conduzi-o à povoação, meti-o na loja e justifiquei a razão do meu procedimento. O medo devia estar-me chapado no rosto, pois a minha mãe contemporizou com o meu regresso antecipado.

2 - JOGO INESPERADO

É consabido o facto de, até tempos bem recentes, não haver em Portugal o conceito sobre a "exploração de mão-de-obra-infantil". E consabido é que os filhos, arredado tal conceito do seio comunitário e familiar,  integravam a mão-de-obra necessária à sobrevivência e necessária à aprendizagem da vida, cuja economia assentava na agricultura, na pecuária e noutras artes que estendiam as suas raízes até tempos remotos. Nas nossas aldeias a aprendizagem e o crescimento faziam-se em simultâneo e as competências adquiridas não recebiam diplomas de reconhecimento, nem havia programas de "NOVAS OPORTUNIDADES" destinadas a DIPLOMAR o CURRICULUM VITAE.

Do currículo da minha vida fazem parte alguns encontros com LOBOS, umas vezes só e outras acompanhado. Já publiquei aquela que maior susto me pregou e, não obstante essa terapia, que é extirpar, por qualquer meio,  os medos acumulados no nosso subconsciente,  não raro deixo de sonhar com tais bichos e faz-me sorrir a dulcificação que alguns ecologistas de alcatifa procuram fazer do Lobo Mau da Branca de Neve. Alguns deles, é tão certo como eu chamar-me Abílio, só lidaram com os "meios cães" a que dão o nome de LOBOS, aqueles que, reproduzidos em cativeiro, espalham pelas nossas serras, visando contrariar o desaparecimento do lobo ibérico em vias de extinção, bicho esse que foi o protagonista dos meus encontros e cujas navalhas de marfim, ditas "dentes caninos", em vez de "dentes lupinos",  nunca mais me largaram a memória desde que as vi "arreganhadas" num daqueles que se matavam nas batidas que depois se passeavam pelas aldeias a pedir esmola com ele estendido numa padiola. Dentes e arrepiar a criança mais pimpona.

Aí vai mais esta. 

Eu e mais dois meninos da minha idade, pastorinhos-escolares,  meados do século XX,  rebanho espalhado no monte, não muito longe dele, jogávamos a plancha no troço de um caminho térreo, dito "caminho dos paneleiros", pois era por ele que os oleiros de São Martinho de Mouros, terras do Montemuro, se deslocavam para a serra da Lapa e da Nave com os seus jericos carregados de louça de barro preto, a fazerem pela vida.
O jogo da plancha era nada menos que o jogo do pino, mas com as peças fabricadas por nós mesmos: duas pedras adelgaçadas a fazer de pino e alguns pares de pedras circulares alousadas, prontas a deitar por terra os pinos levantados à distância permitida pelo jeito e força dos nossos bracitos.

Entretidos no jogo, não descurávamos a guarda do rebanho, pois não faltavam lobos na serra. E nessa vigilância vimos um lobo aproximar-se afoito do rebanho. Corremos os três brandindo as "mocas" e gritando, mas ele, fosse pela fome, fosse pela escola, não se assustou. Indiferente ao nosso alarido, atravessou  a mancha de ovelhas e cabras, como que a escolher a peça, enquanto não chegássemos. E escolheu. Já connosco muito próximos, filou uma rês pelo pescoço e tentou arrastá-la. Mas ela, patas de frente especadas em V, recusou-se a fazer-lhe a vontade. Foi a sua salvação. Nós chegámos e, face à nossa ameaça, a fera bateu em retirada, mas não sem antes resmungar, mostrando-nos a dentuça, por não conseguir os seus intentos. A ovelha juntou-se às outras. Com a garganta a escorrer sangue regressámos à aldeia. Os furos deixados pela luta foram tratados convenientemente e cicatrizaram. Eu, é o que   penso hoje, aqueles furos cicatrizaram mais depressa do que o medo que todos nós tivemos. E tanto assim é que, passados tantos anos, todos nós, que crescemos, emigramos e nos encontramos de quando em vez, nos lembramos do episódio e mantemos em memória todos estes pormenores. Aquilo é que eram LOBOS! Aquilo é que eram HOMENS! Com medo, mas HOMENS.

3 - A VALENTIA, O MEDO E A COBARDIA

Hoje, quem consulta o GOOGLE EARTH e escreve a palavra CUJÓ na linha de pesquisa, vê rodar o Globo Terrestre até parar numa pequena aldeia serrana, concelho de Castro Daire,  com um riacho ao fundo. É o rio Calvo, que desagua no rio Mau e este termina no Paiva que, irmanados com o Douro, chegam ao Oceano Atlântico e, por via dele, aos continente e à civilização global.

Foi perto das nascentes do rio Mau, na vertente poente do monte da Cascalheira, nos sítios designados por Mouriscas (Mourisca de Cá, Mourisca do Meio e Mourisca de Além) que se passou a história com um lobo que vos vou contar, vista e sentida de perto.
O caso foi que entre a Mourisca do Meio e Mourisca de Cá, num terreno de carquejas, sargaços e outros arbustos rasteiros onde ovelhas e cabras afiavam os dentes de ruminantes, uma pastorinha, oriunda de uma quinta não muito distante, designada ao tempo, por "Quinta do Pernil" apascentava o seu rebanho, um misto de ovinos e caprinos.

Trazia sempre dois cães com os quais nenhum passante tinha boas relações. Tudo quanto se avizinhasse, aí estavam eles a "arremeter", dentuça à mostra e, não raro tive de corrê-los à pedrada. Um era grande, pelo curto, tipo Perdigueiro Português, mas de perdigueiro não tinha nada. Orelha curta e levantada era o guia do parceiro que o seguia ão..ão...ão...béu...béu... nas suas incursões de ataque. Sempre que a pastorinha por ali andava, eu, menino da mesma idade, procurava passar ao largo, com medo de tais bichos.
Um dia, porém, assisti a uma cena que gostei de ver, a curta distância. Ouvi os cães ladrar e, desta vez eles perseguiam um lobo que tentou a sua sorte em carne fresca. Ão...ão...ão...béu...béu...béu...o lobo, perna alta, marca ibérica, cauda a varrer o chão, galopava à sua frente e, afoitos, os cães mostravam à pastora a razão da sua existência. Ão...ão...ão...béu...béu...béu...era esse o seu ladrar. Mas, de quando em quando, o lobo, sentindo-os aproximar-se, virava-se de repente perseguindo-os. E todas as vezes que ele isso fazia, os cães mudavam de atitude e de cantilena: o...ão...ão...béu....béu...béu...virava a caím...caím...caím...procurando apressados refúgio junto da dona. 

Eu, puto, que temia aquelas feras quando passava por perto, ria-me a bom rir. Afinal eles eram uns valentões, perseguiam pessoas e lobos, mas sentindo-se ameaçados, mal viam a dentuça lupina, acompanhada daquele som ameaçador hãããã...ã...ã... viravam cagões, borrados de medo, procurando segurança junto da pastorinha, tão amedrontada quanto eles. 
Numa me esqueci da cena e, não há muito tempo, que a referi comparando o comportamento desses cães com o de certas pessoas que, no campo da Internet, em blogues ou páginas do Facebook, sob o ANONIMATO "mordem" as canelas daqueles de quem não gostam. Uma espécie de fauna desconhecida que, nesta realidade virtual, bípedes, querem pertencer à família dos leões, mas que não passam de  "rafeiros", sem coragem de pôr o NOME e o ROSTO naquilo que escrevem. Enfim uma atitude que mais não revela senão o MEDO que os persegue e das vítimas que perseguem.
























Ler 1422 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.