MOTE
Fui nova e cortante enxada
Desbravei e cavei o chão
Fui sucata abandonada
Ando agora num canhão
I
Ainda me lembro de ser
Pedra de mineral
Lembro-me da luta infernal
Do braço para me colher
Levaram-me a derreter
E em ferro fui transformada
Fui feita à martelada
Numa bigorna fui estendida
Deram-me a forma devida
Fui nova e cortante enxada
II
Comprou-me um moço possante
E pôs-me um cabo de madeira
Lá vou eu na segunda feira
Nos braços desse gigante
Desde esse dia em diante
Foi a minha profissão
Desbravar terra para pão
Relvas, vinhas e olivais
Vinte anos, talvez mais
Desbravei e cavei o chão.
III
Começava de manhã
Sempre em luta vigorosa
Mesmo em terra pedregosa
Cada vez com mais afã.
Resisti enquanto sã
E poder ser consertada
Já velhinha abandonada
Deixei de ser ferramenta
Fui para o canto ferrugenta
Fui sucata abandonada.
IV
Passei anos sem valor
Com velhos ferros como eu
Até que um dia apareceu
Lá por casa um comprador
Mandaram-me num vapor
Fui a nova fundição
Por destino ou por condão
Deixei de cavar a terra
Mandaram-me para a guerra
Ando agora num canhão.(*)
Não. Desta vez eu e as minhas irmãs não fomos para a fundição. Eu e as minhas irmãs, gastas, rompidas, ferrugentas, sem os dentes que perdemos durante dias, tardes e manhãs a enterrar sementes, tivemos sorte melhor do que muitas das nossas antepassadas, as enxadas.
Passou por nós um historiador e ele que também foi cavador e na floresta das letras é lenhador, onde, de podão em punho, procura abrir clareiras de conhecimento e de humanidade (ó quanto isso valeu!), olhou para nós e leu os nossos préstimos, a nossa utilidade e fez de nós peças raras de museu. E fez mais ainda. Coisa linda. No sítio da cunha que ajusta o cabo ao olho, na extremidade fundeira, junto à terra, olhou e ali uma caneta encavou, esse símbolo da cultura, casada agora com a (agri)cultura camponesa, a escrita do trabalho e do suor que põe o pão na mesa. Ele, o historiador, o cavador, o lenhador na floresta das letras, faz destes seus gestos e das suas palavras sementes, não já lançadas à terra, mas nas mentes.
(*) LITERATURA ORAL: «Décima» recolhida por mim no concelho de Castro Verde, atribuída a Manuel de Castro, natural de Cuba.