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quarta, 02 fevereiro 2022 13:52

(AGRI)CULTURA

Escrito por 

AS ENXADAS

No tempo em que exerci funções docentes na vila de Castro Verde dei-me ao cuidado de fazer uma recolha exaustiva das ditas «décimas populares» não incorporadas nas antologias de LITERATURA institucional que me foi veiculada nos liceus e universidades. Fiz entrega dessa COMPILAÇÃO na secretaria da Câmara Municipal daquele concelho.

Já aludi a esta minha tarefa em escritos anteriores e sublinhei quanto eu aprendi ouvindo ou lendo essas «décimas» (ditas de 40 pontos) por serem composições que tinham à cabeça uma QUADRA a servir de MOTE. Este era depois glosado em QUATRO décimas, terminando cada uma delas, sequenciadamente,  com um verso do MOTE. Assim:

 

MOTE

Fui nova e cortante enxada

Desbravei e cavei o chão

Fui sucata abandonada

Ando agora num canhão

I

3-enxada - CópiaAinda me lembro de ser

Pedra de mineral

Lembro-me da luta infernal

Do braço para me colher

Levaram-me a derreter

E em ferro fui transformada

Fui feita à martelada

Numa bigorna fui estendida

Deram-me a forma devida

Fui nova e cortante enxada

II

1-enxada - CópiaComprou-me um moço possante

E pôs-me um cabo de madeira

Lá vou eu na segunda feira

Nos braços desse gigante

Desde esse dia em diante

Foi a minha profissão

Desbravar terra para pão

Relvas, vinhas e olivais

Vinte anos, talvez mais

Desbravei e cavei o chão.

 

 

 

2-enxada - Cópia

III

Começava de manhã

Sempre em luta vigorosa

Mesmo em terra pedregosa

Cada vez com mais afã.

Resisti enquanto sã

E poder ser consertada

Já velhinha abandonada

Deixei de ser ferramenta

Fui para o canto ferrugenta

Fui sucata abandonada.

IV

Passei anos sem valor

Com velhos ferros como eu

Até que um dia apareceu

Lá por casa um comprador

Mandaram-me num vapor

Fui a nova fundição

Por destino ou por condão

Deixei de cavar a terra

Mandaram-me para a guerra

Ando agora num canhão.(*)

 

 

4-enxada - CópiaNão. Desta vez eu e as minhas irmãs não fomos para a fundição. Eu e as minhas irmãs, gastas, rompidas, ferrugentas, sem os dentes que perdemos durante dias, tardes e manhãs a enterrar sementes, tivemos sorte melhor do que muitas das nossas antepassadas, as enxadas.

Passou por nós um historiador e ele que também foi cavador e na floresta das letras é lenhador, onde, de podão em punho,  procura abrir clareiras de conhecimento e de humanidade (ó quanto isso valeu!), olhou para nós e leu os nossos préstimos, a nossa utilidade e fez de nós peças raras de museu. E fez mais ainda. Coisa linda. No sítio da cunha que ajusta o cabo ao olho, na extremidade fundeira, junto à terra, olhou e ali uma caneta encavou, esse símbolo da cultura, casada agora com a (agri)cultura camponesa, a escrita do trabalho e do suor que põe o pão na mesa. Ele, o historiador, o cavador, o lenhador na floresta das letras, faz destes seus gestos e das suas palavras sementes, não já lançadas à terra, mas nas mentes.

(*) LITERATURA ORAL: «Décima» recolhida por mim no concelho de Castro Verde, atribuída a Manuel de Castro, natural de Cuba.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.