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sábado, 12 fevereiro 2022 10:14

AS DÉCIMAS E A LITERATURA ORAL

Escrito por 

LITERATURA ORAL 

Ontem deixei as LETRAS e dediquei-me às ARTES. E no meu mural do Facebook deixei a justificação que abre o texto  do qual aqui apresento parte, assim:

Eu, modesto lenhador na floresta das letras que, de podão em punho, persiste em abrir clareiras de conhecimento e de humanidade (usando essa tosca ferramenta de antanho, bem adequada ao corte das silvas) à falta de inspiração para a escrita, desci aos fundos da moradia que habito e, botando mão ao RESTAURO da cabeceira da CAMA DE FERRO onde, em menino e jovem, dormi SONHOS E PESADELOS, cheguei ao fim do dia com o produto que mostro na fotografia ao lado.

 PRIMEIRA PARTE

Mas como tenho andado a lidar com as DÉCIMAS POPULARES, e o mais que da LITERARURA ORAL veio à rede na recolha que fiz no concelho de Castro Verde, em 1982, aqui deixo a INTRODUÇÃO à COMPILAÇÃO que resultou do trabalho de campo, feito de gravador ao tiracolo e/ou esferoráfica e lápis em riste e entreguei «pro bono»  ao MUNICÍPIO DE CASTRO VERDE quando regressei ao meu concelho de origem. Assim:

A ilustração manuscrita do texto, foi-me dita pela minha prima MARIANA LANÇA (em casa de quem me alojei até arranjar casa alugada) que ignorava o autor, mas que eu vi e ouvi, mais tarde, ao som da guitarra e da viola, cantada ao ritmo de FADO por António Pinto Basto, artista que diz dever a letra ao seu avô. Para melhor fundamente anexo o link em rodapé, partilhado do Youtube, batizada  “MESTRE ALENTEJANO”.  E que diferença, digo eu,  entre ouvi-la ao ritmo do fado e da toada  cantante alentejana em que são ditas todas as DÉCIMAS POPULARES.

Assim, como assim, fazendo uso do produto da minha pesquisa, eis o texto que recolhi:

altentejo - redzALENTEJO

I

Terras de grandes barrigas 

Onde há muita gente gorda

Sopa de cheiro é açorda

Quisquer açordas são migas

Às razões chamam cantigas

Melhaduras são gorjetas

Maleitas chamam malêtas

E em vez de encostas, chapadas

Em vez de açoites, nalgadas; 

E as bolotas são bolêtas.

II

Terra mole é atasquero

Dar goejetas é convidar

Deitar fora a aventar

Fita de coiro é atero

Vaso com planta é cravero; 

Carpinteiro é abegão; 

E a choupana é cabanão; 

às hortas chamam hortejos; 

Os cestos são cabanejos

E ao trigo chama-se pão! 

III

No resto de Portugal

Ninguém diz palavras tais

As terras baixas são vais

Monte de feno é frescal

Vestir bem parece mal

à aveia chamam cevada

E ao bofetão orelhada 

Alcofa grande é gorpelha 

A égua alazã é vermelha; 

Poldra isabel é melada!..

IV

Quando um tipo está doente 

Logo dizem que está morto

E a todo o vau chamam porto

Chamam gajo a toda a gente; 

Vestir safões é corrente

Por acaso é por adrego

Ao saco chamam talego

E até nas classes mais ricas

Ser janota é ser maricas

Ser beirão é ser galego

V

Os porcos medem-se às varas

E o peixe vende-se aos quilos

E a gente pasma de ouvi-los 

usar maneiras tão raras! 

Chamam relvas às searas, 

às vezes não sei porquê

E tratam por vomecê 

Pessoas a quem venero!... 

Não quero dizem quero! 

Eu não sei, dizem nã sê!

SEGUNDA PARTE

As décimas populares, diferentes destas que aqui apresento, também chamdas quadras, quadras de quarenta e quatro pontos, obras e contos versados, são coposições poéticas formadas por um “mote” de quatro versos, seguido de quatro estrofes rematadas, cada uma de per si, com os versos que constituem a quadra e respeitando a ordem que nela mantém.

Composições poéticas periféricas, cujos autores são na sua maioria analfabetos, semianalfabetos ou analfabetos funcionais, omissas estão nos compêndios da LITERATURA PORTUGUESA, pelo facto de não terem recebido, por parte dos responsáveis pela preservação e divulgação da cultura popular, a devida e merecida atenção, atitude a que não será alheia uma certa concepção de CULTURA, aquela que é veiculada pelo discurso escolar institucionalizado (...)

Que eu tenha conhecimento estas “obras” apesar da temática variada e rica que abordam e da subtileza com que os seus autores manipulam o “verbo”, não figuravam, e creio  aue ainda não figuram, nos manuais escolares, pelo que não sendo objecto de estudo, se estará retirando ao estudante (de qualquer grau)  o contato com o testemunho irrefutável do talento, espírito criador/crítico e a capacidade de expressão do povo, isto talvez porque “há tanto homem instruído/a quem a instrução embrutece”, verso que veremos a sen tempo, devidamente enquadrado.

ESTROFE DE 10 VERSOS FORMALIZADA HÁ 300 ANOS

Não sei em que momento da HISTÓRIA DA LITERATURA  (oral ou escrita) a décima adquiriu, para não mais abandonar, a forma como se apresenta.

Tal como chegou aos nossos dias ela parece comportar marcas das cantigas de amigo, do vilancete medieval, de outras composições coevas, bem como (aqui não há dúvida) a marca da décima clássica, enquanto estrofe de dez versos, que atingiu forma acabada no século XVII.

Com efeito, o gosto de versejar glosando um “mote”, (não é o caso da que transcrevi acima) remonta aos primórdios da nossa literatura. O vilancete típico reproduz integralmente o último verso do “mote” no fim de cada estrofe, sem que contudo, este processo se tornasse  regra geral na arte de poetar medieval. Os poetas, populares e eruditos, influenciando-se mutuamente, ensaiando, através dos tempos,  estrutura, métrica e rima, chegaram a uma forma acabada que, seguindo o esquema rimático da décima clássica - ABBAACCDDC - jamais seria abandonado. E desde a sua formalização a esta parte já lá vão cerca de 300 anos.

Perante isso ocorre perguntar quais as razões do arreigamento, por parte dos poetas populares ainda vivos, a um estereótipo velho e relho, sabendo nós que, não obtante também utilizarem outras formas de versejar, foi este  que cultivaram por excelência?

O SEGREDO

Cantadas e contadas em pequenos grupos, em família, numa taberna, num largo, cuja chamada à memória não raras vezes se consegue com a ajuda de Baco, vendidas em folhetos soltos nas feiras e aqui também cantadas, às vezes à desgarrada e de lufada repentista, salvo melhor opinião é ao ritmo melódicodo do verso, à problemática que abordam e às virtualidades mnemónicas do esquema rimático que as décimas populares, fora dos livros de estudo,  devem, em grande parte, a sua resistência à erosão do tempo. A sua estrutura fixa, adptada aos meios de comunicação do mundo camponês e em concordância com a vida estática e rotineira desse mundo, sobreviria, sem alteração, até à chegada de outros meios e formas de comunicação que lhe cavaram a sepultura, veiculanto outras culturas e entretenimentos.

Hoje, pouco produzidas por poucos, poucos, são os velhos que “atanganham” (sic) obra completa. E para o fazerem, aqueles que o fazem, não raras vezes param para voltar ao princípio e apanhar a “sequência”, como dizem.

Algumas delas estão irremediavelmente perdidas, digeridas que foram por Lete. Acabada a geração que viu nascer a televisão, outros meios de comunicação solcial e outras formas de vida, desaparecerão dezenas e dezenas de “obras” que poderiam figurar, a justo título, no arquivo do nosso património cultural.

No ensejo de contribuir para a salvaguarda de algumas, dentro das minhas possibilidades e disponibilidades, sem qualquer subsídio e estímulo, que não seja o respeito que me merece a cultura consubstanciada, aqui, no legado às gerações  futuras de maneiras de ser e estar no mundo das gerações passadas, iniciei uma recolha de décimas, cuja quantidade dependerá das possibilidades e disponibilidades que, à partida, estão muito aquem da minha vontade.

Acresce dizer que, neste primeiro passo, aos objectivos imediatos que me propuz de recolher e divulgar as composições não presidiu qualquer critério de seleção em termos de qualidade, já que a boa ou má qualidade de cada uma, independentemente da sua origem cósmica e progenitores, não sou em quem a avalia. Ela está no grau de aceitação que as mesmas tiveram no seio das populações, em geral, e, em particular, nas pessoas mais aptas para produzi-las, transmiti-las e retê-las, independentemente de terem sido arquivadas na memória por via oral ou escrita.

AUSÊNCIA NOS CURRICULOS ESCOLARES

É evidente que recolhendo e divulgando a cultura popular e pugnando por que ela entre nos curriculos escolares, está subjacente ao meu pensamento a ideia da descentralização pedagógica e cultural preconizadas pelas atuais correntes de pedagogia que informa uma educação democrática. A recolha e estudo da cultura popular (seja qual for a forma que revista) conduz naturalmente a um discurso pedagógico mais adequado e consentâneo com os alunos, enquanto oriundos das comunidades que tal cultura produziu e constitui o substrato da sua formação pré-escolar.

Enfim, sem curar de aprofundar as razões subjacentes à rejeição deste tipo de cultura, comtrapondo-a à cultura institucionalizada, a única que aparecia nos livros com foros de dignidade, devo dizer que, uma vez aceite como igualmente digna (nem melhor, nem pior, mas tão somente diferente), para além do aproveitamento “literário” que cada professor entenda fazer de cada “obra”, todas elas, pela temática que abordam ou tratam, são um repositório histórico da sociedade que as viu mas er e bem dignas são, por isso, de reflexão dos sociólogos da literatura.

E para terminar, uma ressalva: discutindo-se hoje o facto de o fenómeno literário não ser forçosamente normativo, o qual pode até incluir distorções na forma gráfica, eu me penitencio por ter utilizado, com raras excepções, a ortografia corrente, na colecta que se segue. As circunstâncias que rodearam a recolha que fiz contribuiram, em grande parte, para que isso acontecesse.

NOTA 1:  cf. «INTRODUÇÃO»  ao trabalho de recolha de poesia popular que fiz no concelho de Castro Verde, publicada no “Diário do Alentejo”, II SÉRIE, n. 44, de 25-02-1982, pp. 4.

 NOTA 2: Link que remete para  o «MESTRE ALENTEJANO»  de A. Pinto. Basto

 https://youtu.be/EwxUZmCod2c 

 

 



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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.