A NORA
A nora, esse engenho de outrora vindo das arábias, desse povo de coisas sábias
ligadas às matemáticas e à exploração da água de beber e de rega, escondida nas profundezas da terra. Assim o aprendi e assim ensinei com muita simpatia pela inteligência na luta dos povos pela sobrevivência. Um poço aberto num areal, aberto num descampado, dentro ou fora de Portugal, uma roda munida de alcatruzes (é isso que eu sei) não havia deserto que esse povo, arredado das cruzes, deixasse por esventrar e trazer à superfície o líquido que rega e mata a sede. Que dá vida, antónimo de morte. E quem me impede de ler poesia naquela vida dura de burro, de burra ou de camelo, sempre à roda do poço, de coleira metida no pescoço e a geringonça que encanta adulto e criança, no seu monocórdico "chiu...chiã...chiu...chiã", desde manhã cedo à noite escura, quem vai sabê-lo, se chora, se canta? Chiu...chiã...chiu...chiã...
No Alentejo havia noras e poços espalhados pelos montes. A água não gorgolejava livre e cantante das fontes, como aqui no norte. Um balde preso à ponta de uma corda, sempre ali ao lado, convidava o viandante, o caçador, o criado e o senhor sedentos a servirem-se. Eu me servi. E lá como cá (que ousadia minha) sempre que bebo água, bebo poesia.
(Publicado no Facebook em 3 de setembro de 2014)