Trilhos Serranos

Está em... Início Crónicas DOCENTE NA ESCOLA E FORA DELA-5
segunda, 10 fevereiro 2025 14:04

DOCENTE NA ESCOLA E FORA DELA-5

Escrito por 

TAVERNA-ESTALAGEM-CASA DE PASTO-RESTAURANTE

Em recente crónica publicada neste site, aludi a uma TAVERNA sita em Casével, Castro Verde, Alentejo, onde, entre amigos e parentes, fiz um registo audio de algumas parcelas da CULTURA POPULAR ORAL ALENTEJANA. Foi no tempo que exerci a docência no concelho de Castro Verde.

 

PRIMEIRA PARTE

GRALHEIRAE, satisfazendo este meu vício incurável de exercer a “docência na escola e fora dela”, prossegui na saga de investigação no meu concelho de origem - CASTRO DAIRE - fazendo uso de todos os suportes de comunicação. E, por isso, no último vídeo que alojei no Youyube, sobre o RESTAURANTE “PARQUE COM ÁGUA”, colado à mítica ESTRADA NACIONAL N. 2, - Vila Pouca, vieram à conversa as antigas TAVERNAS, ESTALAGENS, CASAS DE PASTO e RESTAURANTES, sem, contudo, em momento algum, se associar qualquer destes estabelecimentos aos ANIMAIS, esses nossos fieis auxiliares na trajetória histórica, que lhe deram nome e vida, fossemos nós simples romeiros, viajantes de passeio ou almocreves  de negócios, eles, os ANIMAIS, merecem que o historiador lhes atribua o destaque merecido, associando-os aos sítios onde éramos obrigados a parar a fim retemperarmos energias e, depois, prosseguirmos viagem.

É isso. Lenhador que sou na FLORESTA DAS LETRAS, que, de podão em punho, procuro abrir clareiras de conhecimento decorrentes do múnus que exerço, impõe-se-me esgalhar aqui a minha experiência de camponês e de pastor que, cedinho, estrelas a piscar no firmamento, tirava os aninais da loja e conduzia-os ao “pasto”, aos lameiros do meu pai para eles encherem a morca antes de chegar o calor, antes de chegar a pidadela da mosca.

 

CAVALO-ARADOSem recurso a dicionários, prontuários e  bibliografia afim, produzida pelos nossos académicos, recorrendo a Cícero, Plauto, Virgílio, Varrão e outros sábios da ANTIGUIDADE CLÁSSICA, as palavras pasto, comida, empalho, penso entraram, naturalmente, no meu léxico de menino de escola, sempre ligadas aos animais domésticos, nossos auxiliares na labuta diária de sobrevivência. 

E no movediço formigueiro humano, a deslizar por veredas, caminhos e estradas, nas povoações ou fora delas, não faltavam estrategicamente pontos de repouso, de descanso, para homens e bestas. Eram as tavernas, as estalagens, as albergarias, alquilarias (estas para muda de bestas, em serviço de diligência) e, daí, o aparecimento das CASAS DE PASTO, estabelecimentos  com porta aberta destinados a servirem COMIDA para que os PASSANTES e os ANIMAIS, seus ajudantes, retemperassem as energias e pudessem prosseguir a viagem quando quisessem. 

E sendo esta associação PASSAGEIROS, ANIMAIS E SÍTIO tão óbvia para mim, camponês, a lidar quotidianamente com os animais e o seu sustento,  estranho é que os nossos LINGUISTAS e GRAMÁTICOS, nos dicionários de que são autores, se tenham acomodado à  designação simples e redutora de lugares “destinados a fornecerem o comer e o beber”, sem mais delongas.

SEGUNDA PARTE

E o DOUTOR GOOGLE, catedrático universal, com muitos ASSISTENTES especializados em todas as disciplinas, não adianta muito mais sobre a CASA DE PASTO. Apenas e somente: “casa onde servem refeições”

Nenhuma explicação destas associa o “pasto” e o “penso” aos animais que chegavam à taverna, à estalagem e que o estalajadeiro, seguindo os ditames dos seus interesses comerciais, dispunha para contento dos passantes esporádicos ou dos almocreves de profissão a necessitar de alimento e de pernoita. 

Espelho DicionárioDada a minha vivência e lides com os animais e sua alimentação, não satisfeito com as explicações encontradas na BIBLIOTECA DIGITAL, desiludido com as explicações do DR. GOOGLE, dei-me ao trabalho de consultar os diversos DICIONÁRIOS que possuo cá em casa, preferindo o que, há muitos anos, adomecido estava numa das estantes da biblioteca. Em verdade se diga que ele, acordado assim de repente, estranhou eu ter interrompido o sono profundo em que mergulhava. Capa de cabedal remendada, nos lados e na lombada, semelhantemente aos filósofos cínicos da Grécia Antiga que cobriam o corpo de andrajos, mas vestiam o espírito de ricos, nobres e altos pensamentos, também este DICIONÁRIO VELHINHO, bastou abri-lo para prodigamente me saciar esta minha sede de saber e “fazer-saber”, mesmo que, também ele, explicando tudo sobre PASTO, não faça a associação da CASA DE PASTO ao GADO que na CASA encontrava PASTO

Trata-se de uma relíquia e como tal é tratado no manuseio que dele faço:

Capa-dicionárioDICCIONARIO PORTUGUEZ-FRANCEZ-LATINO, NOVAMENTE COMPILADO QUE À AUGUSTÍSSIMA SENHORA D. CARLOTA JOAQUINA, PRINCESA DO BRASIL, OFERECE E CONSAGRA JOAQUIM JOSÉ DA COSTA E SÁ, PROFESSOR RÉGIO DE LINGUA LATINA, E SÓCIO DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA. LISBOA. M.DCC. LXXXXIV

 

 

Dele transporto para aqui as seguintes “entradas”, em Português, Francês e Latim, que coloco em colunas paralelas para facilitar a leitura.  Assim:

 

ESTALAGEM 

PORTUGÊS

FRANCÊS

LATIM

Casa pública onde os viajantes se agasalham por seu dinheiro.

Hotellerie, maison, lie où l’est reçu, traité por son argent, lorsqu’on va en voiage, auberge, logis por les passons

Diversorium. ii. s.n. Caupona, ae, s.f. Cic. Taverna, diversoria.  Stabulum.i. f.n. Cic.  diversoria, Stabulum,i. f.n. Plaut).. (Diversoriolum.i. s.n. Cauponula,ae. s.f. Cic). Diversari. Cic. Satabulari.Varr. Satabulari, Virg. 

 Pela boca deste régio professor de Latim, ficamos a saber, o significado de ESTALAGEM, desde a ANTIGUIDADE. E anoto, com especial prazer, que os escritores latinos, Varrão e Vergílio, lhe associaram  “ESTÁBULO”, eles que, pessoas de LETRAS tinham os pés bem ficados na terra e sabiam, melhor do que ninguém, que “todos os caminhos que levavam a ROMA”, ligando o Império, eram pisados por cavalos a galope, a passo de mula e jumentos a trote. 

E nesses caminhos, nasciam em pontos estratégicos, as tavernas, as estalagens, albergarias e hospedarias. E vem à colação referir a ESTALAGEM e o ESTÁBULO mais badalados no mundo. Refiro-me ao episódio que relata o nascimento de Cristo. JOSÉ, MARIA e o BURRINHO ela prestes a parir, ele sem parteiras por perto, ter-se-iam dirigido a uma ESTALAGEM que ficava em caminho, mas por falta de lugares, o estalajadeiro remeteu-os para o ESTÁBULO. E o resto é o que mais sabe de JESUS entre palhinhas e os animais a aquecê-lo com os seus bafos. Dito isto, e associados que ficam os conceitos de  ESTALAGEM E ESTÁBULO, de ANIMAIS E PESSOAS, passemos às “entradas” seguintes:

TAVERNA 

PORTUGUÊS

FRANCÊS

LATIM

Lugar onde se vende vinho aquartilhado e se dá de comer

Taverne, cabaret, lieu où l’ on vend du vin pot, ou à pint, ou l’ on donne à manger, gargote

Caupona, Popina. Ganea, ae s.f. Cic. OEnopolium,ii, s.f. n. Diversoria taverna,ae, s.f. Plaut.”

RESTAURANTE:

PORTUGUÊS

FRANCÊS

LATIM

Alimento que repara as forças.

Resrtaurant, aliment qui répare les forces

Cibus vallentissimus, in quo plurimum est alimenti. Cels)

PASTO:

PORTUGUÊS

FRANCÊS

LATIM

Lugar, campo onde pasta o gadoA nutrição, ou alimento de gadoComida, alimento, do espírito da alma. O sustento do espírito.

Páturage, pacage, lieu où l’on fait poitre le bétailPáture, la nourriture de bêtesPature, la nurriture de l’esprit, de l’ame

Pascuum.i. s.n. Varr. Pascua, orum, s.n. pl. Cic.). (Pecudum pastus, ús, s.f. Cic.)  (Animi pastus, ús, s.f. Cic.)

É isso. Habituado a levar o gado ao “pasto”, por lameiros e montes, treinado a recolher os “fenos”, o “empalho” o “penso” nos palheiros para os alimentar em tempos de invernia (chuva, codos ou neve) não foi preciso ler o régio professor de Latim, para saber que “pasto=comida=penso eram os alimentos dos animais. Não eram alimento de gente. Mas o régio professor de Latim deu-me a saber, corrigindo o meu saber empírico,  que já Cícero, na ANTIGA ROMA,  associava “pasto” ao alimento humano, v.g. alimento do corpo e da alma: “animi pastus, ús”.

TERCEIRA PARTE

Cavalo-PARIS1Não satisfeito, porém,  com os resultados da pesquisa relativa às “CASAS DE PASTO”, botei mão a outros dicionários e, na generalidade, todos se ficavam pela explicação simples e redutora de serem “estabelecimentos onde se servem comidas e bebidas”, omitindo a sua relação estreita com os ANIMAIS e com os alimentos que lhe serviam, seja, o pasto, o penso. 

Recorri, assim, ao vol. 7, pp. 897, do DICIONÁRIO DE “MORAIS”, ed. 1945. Nele podemos ver o uso que diversos autores portugueses de renome deram ao termo PASTO, no devido contexto narrativo e títulos das respetivas obras. Assim:

DICIONÁRIO DE “MORAIS”, vol. 7, pp. 897, ed. 1945:

PASTO>  Afrânio Peixoto “Maias e Estevas” 350. Comida, refeição. “A gente de não grandes pensamentos nada tanto satisfaz como o bom ‘pasto’ que é felicidade ou trabalho que padecem duas vezes ao dia”. D. Francisco Manuel de Melo, ‘Carta de Guia de Casados’, 47; “não estava persuadida que Deus Nosso Senhor tivesse algum interesse em que ficasse para ali uma donzela relha e revelha só para ‘pasto’ dos vermes”. Aquilino Ribeiro, ‘Volfrâmio’, cp. 6, 196…”os males que tais comas acarretam, de serem moradia e ‘pasto’ habitual de insetos  mui daninhos”. Mário de Andrade ‘Macunaíma”,  121. Fig. “Alimento espiritual; doutrina sã que satisfaz o espírito: ‘entendida em suas devoções particulares e a principal era oração e contemplação seu ‘pasto” quotidiano e antigo”.. Frei Luís de Sousa, “Vida do Arcebispo” I, cap. 11,76; “ No ‘pasto’ da tua alma sentirias doçuras de tantas  novidades que tu mesmo de ti te espantarias”; (…) Rebelo da Silva, “A casa dos Fantasmas” I, cap. 3,36 “Casa de Pasto”, estabelecimento onde se servem comidas…arrastava-se pelas tavernas, dormia pelas calçadas, bebia nos chafarizes e pedinchava pelas ‘casas de pasto’ . Aloísio de Azevedo “Girândola de Amores”, cap. 14, 168, (Bras.) Restaurante Barato, “Vinho de pasto”, vinho comum, usado de preferência nas refeições. (prov.) Com todos faze “pasto”, com o teu amigo quatro”.

Dic. MORAIS

Repararam? A palavra pasto aparece em todos os autores conotada com o alimento de animais e alimento de humano. E só Rebelo da Silva fala em CASA DE PASTO. 

Mas os nossos homens de letras, os nossos LINGUISTAS E GRAMÁTICOS,  no que respeita às “CASAS DE PASTO”, deixaram no tinteiro a explicação da relação direta que estes estabelecimentos tinham e têm com  os ANIMAIS e o PASTO que ali comiam antes  prosseguirem a viagem. Mas, para além da DESIGNAÇÃO dicionarizada, insuficientemente explicada, não desapareceram totalmente as marcas disso. Não raro se veem ainda argolas chumbadas nas paredes dos edifícios para nelas se prenderem as bestas. E, se os “cavalos” e o “pasto” (feno, erva, empalho, grão) passaram à história por este Portugal em fora, eles, os cavalos, bem se acomodam, escondidos, dentro nos motores dos muitos automóveis que, diariamente, estacionam  junto das tavernas, estalagens, casas de pasto e restaurantes do século XXI.

E  para remate desta minha perlenga, tomemos por companheiro Almeida Garrett nas “Viagens na Minha Terra”, ed.  em 1843. Saído Lisboa, Tejo adentro, aporta em Vila Nova da Rainha. Pés em terra, esperava-o um imenso arraial de caleças, de machinhos, de burros e arrieiros. Teve de escolher entre uma caleça e um macho, para prosseguir viagem. Escolheu o macho. E montado nele, pernas bifurcadas sobre o albardão remendado, chegou a Azambuja. Chegou àquelas  “férteis margens do Nilo português”. E, como ele diz, correram a “apear-se no elegante estabelecimento que ao mesmo tempo cumula as três distintas funções de ‘hotel’, de ‘restaurante’ e de ‘café’ da terra”.

A estalajadeira, com aspeto de bruxa, logo “lhe faz cair a pena”.  Uma “estalagem que não tem que invejar à mais pintada e da moda neste século, elegante, delicado, verdadeiro, natural”.  Aquela velha “com a sua moça mais moça, mas não menos nojenta de  ver que ela e um velho meio paralítico, meio demente, que ali estava para um canto com todo o jeito e traça de quem vem folgar agora na taverna porque já bebeu o que havia de beber nela”.

 CUJÓ-1951Não precisamos de mais. Uma fotografia literária das ESTALAGENS dos meados do século XIX, por este Portugal inteiro. E esse Portugal era o mesmo nos meados do século XX, que conheci, sendo ainda menino,  a levar o gado ao pasto. Portugal agro-pastoril, as mesmas tarefas, as mesmas tavernas e as mesmas estalagens, ao longo de caminhos e estradas. Mas eu, nascido e criado na ruralidade, não seria tão severo como Garret, esse dândi citadino, na classificação das tavernas, estalagens, donos e clientes. Muitas haveria diferentes daquela que ele retratou, onde não faltariam mulheres bonitas, gente movida por interesses diferentes e destino diverso. Ouço mesmo a zoeira de conversas trocadas, interesses divergentes, odores que tresandam a suor da andança e do trabalho, diferentes dos perfumes de Paris, por ventura a pairarem na atmosfera de Lisboa e Porto. Rostos cansados, desígnios insondáveis. A tristeza de negócio falhado ou mal sucedido e a alegria do vinho em excesso de negócio fechado com sucesso. Uma estalagem é uma panela onde  a vida ferve em cachão com todos os seus odores, saberes e sabores. Ao balcão ou a mesa, vão coentros e rabanetes, vai a bondade, o bem servir, a má vontade  e a vileza. GENTE. TERRA. ANIMAIS. E não deixo em silêncio o tilintar do martelo de um ferrador sobre a bigorna, dando forna ao  sapato de uma besta necessitada. As mesmas feiras de montanha a mercadejar apetrechos para lavoura e transportes. Molhelhas, tamoeiros, sogas, albardas, selas, selins, cilhas e cabrestos. Gado bovino, equino, muar e asinino. Comida de feira. Tavernas improvisadas. Vinho bastante. Bebedeiras garantidas. E toma sentido amplificado a semântica que rescende da explicação transcrita, mais acima,  provinda do DICIONÁRIO DE MORAIS, atribuída a Afrânio Peixoto, in “Maias a Estevas”:

A gente de não grandes pensamentos nada tanto a satisfaz como o bom ‘pasto’ que é felicidade ou trabalho que padecem duas vezes ao dia”.

Corgo-ForninhoMas para alargar um bocadinho mais a clareira nesta FLORESTA  DAS LETRAS, lancemos o rústico  podão à frondosa árvore plantada por Eça de Queiroz a que deu o nome  “A Cidade e as Serras”, naquele passo em que vemos Jacinto e Zé Fernandes a subirem à serra depois de deixarem o comboio e, juntos, vermos os inseparáveis companheiros  de viagem na trajetória histórica:

“E não tardaram a aparecer no córrego, para nos levarem a Tormes, uma égua ruça, um jumento com albarda, um rapaz e um podengo. (…) Eu cedi a égua ao senhor da Tormes e começamos a trepar o caminho, que não se alisara nem se desbravara desde os tempos em que o trilhavam com rudes sapatões ferrados, cortando o rio a monte, os Jacintos do século XIV”.( pp. 118).

Solar de janelas esventradas, sem vidros, sem a bagagem que despachara de Paris, duas enxergas os esperavam para passarem a noite. Valeu-lhes, ao menos, a saborosa malga de caldo e o arroz de favas cozinhados por gente rude, de paladar sem símile na civilizada Paris,  entre gente fina, lá longe.

 E, já agora, pois vem mesmo a calhar,  mais estes dois galhos cortados em «O Homem da Nave» de Aquilino Ribeiro, na chegada a Lisboa, dos dois protagonistas da viagem, iniciada em terras de Vila da Ponte:

«A mala-posta tomou o caminho de inverno com as águas novas que haviam caído desabaladas naquele mês de outubro. De Ota, pelo Carregado, até Castanheira, foi um pulo. Em Castanheira mudaram de cavalos. Havia oito léguas a vencer até às portas da capital. Povos,, Vila Franca, Alhandra, Alverca, Póvoa, Sacavém, a estrada surgia-lhes coalhada de gente. Mas iam meio amodorrados. Os tombos, as emoções, o vinho haviam atuado como o mais enérgico dos soporíficos. Pe. José Aniceto levava mais peso nas pestanas do que quantas perdizes carregara à cinta num dia de sorte. Estava anoitecer. Quando as mulas picaram o trote ao entreluzir na baixa o nicho do Senhor Roubado. Depois, calçada do Lumiar acima, foi vagaroso, mas estupendo. Lisboa, terra das naus, dos heróis, da Carta, dos mármore, das mulheres de perdição, Sodoma, Gomorra e Nínive juntas, estava a pouco mais de um galope das mulas! P. José Aniceto todo se confrangia em sua alma de campónio, encharcada de tojo, feijão fradinho, partidas de voltarete na botica de Vila da Ponte, bródios de igreja. (…) 

À entrada do Campo Grande, essa vastidão  de tavolado, o Padre proferiu, arregalando os olhos para o ostrogodo de Almeida e Vasconcelos: 

Caramba! Saímos apenas há quatro dias da pategónia…sim, senhor! Ora conte  Vossa Senhoria: terça, quarta, quinta, sexta e menos ainda a alva da terça. Chama-se andar! O mundo por este caminho, esbarra-se, senhor Inácio, esbarra-se que lho digo eu!” (O Homem da Nave”, pp. 284/285: 

E eu que, sendo menino de escola, a crescer num mundo tão vagaroso, estrelas a piscar no firmamento, levava o gado ao PASTO, para ele encher a morca antes de vir o calor e a picada da mosca, a distinguir, claramente,  PASTO DE GADO da COMIDA DE GENTE, apetece-me mandar «pastar» os nossos GRAMÁTICOS para os montes, lameiros e herdades que pisei na minha infância, perto do gado e longe dos livros. Mas, em vez de tal grosseria – sei lá se atrevimento, pois sabido é que a «ignorância é atrevida» - para saciar a minha fome de espírito, vejo-me antes a pastar nos lameiros e herdades que foram granjeadas pelos nossos  especialistas da LINGUA, escritores e letrados que se dispensaram de relacionar os ANIMAIS e o seu PASTO com as CASAS DE PASTO. 

E o meu rústico podão, de corte afiado, esgalha nas entradas do «Novo Dicionário Latino-Português» , de Lello & Irmão, Editores, por forma a não deixar dúvidas:

-Pastorius, a, um. Ovíd, o mesmo que pastura.  ae, f. Col. o pasto e a pastagem ou o prado em que o gado vai pastar.

-Pastus, a, um. adj  part. Virg. que pastou, que se apascentou, que comeu. Ovid comido.

-Pastus, us, m. Cic. a pastagem, o pasto, sutento. Virg. o pastar, o andar pastando.Cic. a matéria em que se ateia e conserva o fogo.

Por tudo isto, penso, certo, certinho, que o pasto, o empalho, a erva, o feno e o penso que, na juventude, eu dava aos animais domésticos lá da casa, não vou eu mastigar para alimentar o corpo. E ainda que o meu podão de lenhador na FLORESTA DAS LETRAS mantenha o fio cortante, precisava algo mais para esgalhar na ÁRVORE DA CIÊNCIA LÍNGUÍSTICA  que até mim chegou. Mas eixo as dimensões denotativa e conotativa  das palavras para outros LENHADORES, reconhecendo, porém,  o acerto e o mérito de Virgílio, Plauto e Varrão,  terem associado ESTALAGEM e ESTÁBULO,  sem a qual, seguramente, nunca teria surgido no léxico português a expressão CASA DE PASTO. Tão óbvio que a explicação dada pelo dicionários devia ser: “Estabelecimento que fornece alimento e dormida a pessoas e animais em trânsito”. Os nossos LINGUISTAS E GRAMÁTICOS, esses especialistas da LÍNGUA, têm, a meu ver, andado muito descuidados. Pois, fincado que estou nos autores clássicos e na vida real, no papel que os animais desempenharam na trajetória histórica junto do homem,  por mais voltas que deem, não conseguem convencer-me de que o sentido literal de «pasto» referido  a «alimento de animais», é «alimento de gente», ainda que, deixando a «manjedoura», tenha subido à mesa de «estalagem», de «taverna», de «restauranrte», de «casa de pasto», com sentido figurado.

Simples. Muito simples. (Cf.  “De retorno ao século XIX” - I-II), neste site).

E, finalmente,  parece-me oportuno colar aqui as palavras de Eça de Queiroz, em «A Cidade e as Serras», reportando-se ao homem da cidade e à atmosfera que nela respira. Palavras que, tipo lacrau com habitáculo sob obscura lapa serrana, cauda arqueada em meia lua, pronto a defender os seus domínios, assentam bem nos LINGUISTAS E GRAMÁTICOS, cujo labor questiono. Assim

«(…) Mas o que a cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagâcia. Nesta densa e pairante camada de ideias e Fórmulas que constitui a atmosfera mental das cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime rodas as expressões  já exprimidas (…) todos intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho, balando o mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam em fila as pegadas pisadas (..)».

 

EPÍLOGO

Cavalo-GaranhãoAntes que o Sol se levante

Saem os gados para a serra

São os costumes da terra

Que vêm de um tempo distante

 

Trabalhos e mais trabalhos

Como se fossemos condenados

É assim por todos os lados

Entre preces, pragas e ralhos.

 

Compadecido o Sol se deita

Para a todos dar descanso

No dia seguinte é outro tanto

Sempre a repetida receita

 

E decorreram séculos assim

Sempre a noite atrás do dia

Tema de perfumada poesia

Que a suor me cheira a mim.

 

Fosse eu um poeta inspirado

Só de papel, caneta e tinta

Ignorasse o peso do arado

Do ancinho e da forquilha

Tanta noite e tanto dia 

Que da minha lavra sairia

Obra mais perfumada e distinta.

 

Mas antes que o Sol se alevante

Me fico. Não vou mais adiante.

___________________________

NOTA 1 - Excerto do texto que escrevi, gosando o poema quinhentista "Antes que o Sol se levante"de Francisco Rodrigues Lobo, colocado no mural do Facebook de Lopo Maria Albuquerque- 2014)

NOTA 2 - Uma palavra puxa outra, um poema puxa glosa e as duas coisas puxam vídeo feito e alojado no Youtube em 2011. É só clicar e ver  http://youtu.be/HKc1WoT1oy0 , 

Ler 531 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.