Os AA pagaram as «custas» à cabeça, como é de regra. Já tinham embarcado € 153,00 e agora mais € 306.00. E veio a primeira audiência. E veio a segunda. E veio a terceira, no salão do Tribunal Judicial de Castro Daire, onde a Meritíssima Juíza se deslocou. Tudo gravado, para não se perder pitada, nem se desaproveitarem as novas tecnologias e a inovação visível e material da nossa Justiça, nas últimas décadas.
Sentada na secretária, iniciaram-se os trabalhos. Senhora de poucas palavras, ouvindo mais do que falando, revelou-se bastante assertiva nas poucas interrupções que fez, nomeadamente interrogando-se a si própria e ao Tribunal, quando verificou que os RR, sendo um casal, na mesma causa, dispunham cada um de «per si» seu advogado.
Está gravado, mas eu cito de memória, esperando não trair o pensamento da Meritíssima: «está-me a causar uma certa espécie saber que, atravessando nós, uma época de finanças precárias, cada um dos réus tem o seu advogado». Disse isto, fitando os advogados dos RR. Um deles, visivelmente incomodado, o Dr. Adriano Pereira, de São Pedro do Sul, remeteu para a «Ordem dos Advogados» e a outra, uma jovem advogada, nem tossiu, nem disse nada.
Igualmente assertiva e oportuna foi quando a testemunha Cidália Monteiro Lemos da Costa estava a fazer o seu depoimento. Respondendo às perguntas sacramentais da Meritíssima, feitas a todas as testemunhas, confessou estar de relações cortadas com os RR. Interpelada pelo advogado de defesa dos mesmos, sobre há quanto tempo e as razões disso, respondeu que nada tinha a ver com o caso presente e não ia dizer. Interpelada novamente disse tratar-se de coisas pessoais. Mas, dada a insistência acabou por dizer que a Ré lhe tinha batido por razões ligadas ao transporte das crianças para a escola de Farejinhas. E acrescentou que «só não tinha posto o caso no Tribunal para a poupar a gastos com a justiça», ao que a Meritíssima acrescentou na oportunidade: «mas podia, podia fazê-lo que ela não paga nada, até tem dois advogados».
E foi seguramente esta sua estranheza, posta pertinentemente em audiência pública, que a Meritíssima Juíza não deixou de referir também na sentença que, a seu tempo, lavrará sobre o caso. A essa sentença voltarei mais tarde, mas transporto para aqui agora esse reporte para melhor fundamento da asserção e deixar bem claro que, nas instituições e fora delas, houve quem visse e denunciasse as brechas por onde entrou a Troika em Portugal: dinheiros gastos desnecessariamente, em nome da justiça, já que ao Estado cabe dar «apoio judiciário» aqueles que carecem de justiça e não têm meios para aceder a ela. Assim:
Repare-se na primeira linha e no parágrafo metido entre a primeira e a segunda. Transcrevo: «Os RR devidamente citados, contestaram, fazendo-o, cada um de per si (não obstante serem casados), alegando factos (…)». A estranheza da Meritíssima Juíza posta desta forma escrita, como antes o tinha feito de forma oral, era comum à generalidade das pessoas que conheciam o caso, interrogando-se como é que «um casal» na «mesma causa» tinha dois advogados, cada um «para si».
E assertiva se mostrou neste ponto, assertiva foi igualmente quando a advogada mandatária de um dos RR, Joana Sevivas, «apertava» uma testemunha dos AA. exigindo que ela dissesse «quantas vezes os tinha visto passar na eira, ou as pessoas que trabalhavam o quintal».
A testemunha, de seu nome Maria José, a residir em Fareja, insistia que vira frequentemente isso, mas que não sabia o número de vezes, pois nunca as tinha contado e «nem imaginava sequer que tal coisa fosse parar ao tribunal», senão tê-lo-ia feito. Face ao que a Meritíssima Juíza, dirigindo-se a ela, como que a sugerir outro rumo ao interrogatório, disse: «pois se a senhora soubesse levava um caderninho e tomava nota, não era?». E a advogada deixou a testemunha em paz e passou à frente.
Feitas as audiências que a Meritíssima entendeu oportunas e necessárias, marcada que foi a que se destinava à «leitura dos quesitos», ela não compareceu, marcou para outra data, onde só esteve presente o meu mandatário.
À primeira marcação tinham acorrido não só as testemunhas, mas também muitas pessoas de Fareja, ansiosas de verem o «andar da carruagem» e presumirem quem «ia lá dentro». A JUSTIÇA, para o povo de Fareja, jogava nesta causa o seu nome e a sua razão de ser. Essas pessoas queriam ouvir da boca da Meritíssima a conformidade ou desconformidade das leis e sua interpretação com a realidade secular daquela servidão de caminho e rego. A ausência da Meritíssima foi uma frustração. E eu apercebi-me, ao vivo, que a Justiça não se circunscrevia apenas ao espaço de uma sala de audiências e ao domínio dos artigos e folhas que dão corpo aos Códigos de Leis Cíveis ou Penais. Ela estava no senso comum, no sentir e pensar das pessoas que, ignorando tais artigos e tais Códigos, sabiam bem de que lado estava a verdade. E queriam ouvi-la da boca da magistrada.
Os autos permaneceram nas suas mãos até 08/05/2013, data em que tomei conhecimento da respectiva sentença. É dela que destaco «ipsis verbis» a decisão final:
«III – Decisão
«Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e julga-se a reconvenção improcedente, por não provada e, em consequência decide-se:
a) Condenar os RR a reconhecer o direito de propriedade dos AA sobre o prédio urbano e quintal anexo inscrito na matriz predial da freguesia de Castro Daire., sob o artigo 3366 e descrito na CRP de Castro Daire sob o nº 101/19850912
b) Condenar os RR. a reconhecer que sobre a eira que integra o prédio, sito no lugar de Fareja, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 13814: da freguesia de Castro Daire, a confrontar com o caminho, sul e poente com Leonel Ferreira Duarte e outros e nascente com Nazaré Cardoso, a favor do quintal do prédio dos AA., identificado na al. a) do dispositivo uma servidão de passagem, a pé, de carro, incluindo tractor e animais, através de uma faixa de terreno com cerca de 21m de comprimento por cerca de 2,40m de largura, através da eira referida, no sentido sul-norte, a poente do canastro aí existente, desde a abertura com 2,40 de largura no muro sito na estrema norte do prédio dos AA., onde existe um portão feito em rede com aro em tubo de ferro até à abertura no muro da vedação com o caminho público a norte da eira, com a largura de 2,40, onde existe um portão em chapa de ferro, sem chave, servidão essa a exercer diariamente e a qualquer hora.
c) Condenar, ainda os RR. a não obstruir ou por qualquer meio impedir ou não dificultar a passagem em favor do prédio dos AA., sobre a faixa de terreno mencionada em b)
d) Absolver os RR do demais pedido pelos AA.
e) Absolver os AA/reconvindos dos pedidos reconvencionais formulados pelos RR/reconvevintes.
Custas da acção pelos AA. e RR, na proporção, respectivamente de 10% e de 90% e custas das reconvenções pelos RR/reconvintes (cf. artº nos 1 e 2 do C.P.C.), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido aos últimos.
Registe e notifique
Lamego, 08/05/2013 (pp.37/38)»
(continua)