Trilhos Serranos

Está em... Início Crónicas TRIBUNAL DE CASTRO DAIRE (18)
sexta, 28 março 2014 16:21

TRIBUNAL DE CASTRO DAIRE (18)

Escrito por 
DA FICÇÃO À REALIDADE

PARA UMA MELHOR JUSTIÇA (18)

 Definidas as modalidades: «aqueduto», «escoamento», «presa», «aproveitamento para uso doméstico» e «para fins agrícolas», a Magistrada quedou-se na modalidade «aqueduto» por ser, in casu , no seu entender, o que estava em discussão.
E escolhido o ângulo de abordagem em «matéria de direito» (a «matéria de facto» tinha sido dada como «provada»), rebuscou saberes, estudos e jurisprudência afins, remetendo para as fontes, e assentou:

 

«(…) a servidão de aqueduto, pressupondo o direito à água derivada, consiste fundamentalmente na sua condução para o prédio onde é utilizada (dominante) por meio de cano condutor através do prédio alheio (serviente).
Para a aquisição do direito de servidão de aqueduto, por usucapião, é ainda necessário, além dos demais exigidos por lei, estroutro requisito: a construção de obras visíveis e permanentes, no prédio onde existe a fonte ou nascente que revelem a captação e a posse da água nesse prédio, durante o curso da água e no seu termo».

Assim disse ela, in casu. Eu direi que «in casu», assim explicado e fundamentado, nós temos o bom exemplo do desfasamento das leis e da terminologia jurídica com a realidade e o léxico camponês. Mas se a questão do desfasamento fosse só de léxico, ainda vá que não vá. Falar de aqueduto (termo jurídico codificado) em vez de rego ou de levada, termos usados dezenas de vezes pelas testemunhas, todos sabendo que se tratava da mesma coisa, tudo bem. O que já não esteve bem, foi quando a Meritíssima, retirou do rego e da levada as «obras visíveis e permanentes», atributos indispensáveis ao «aqueduto» (termo codificado), para concluir, como veremos mais adiante, que, à falta desses atributos, a «questão do aqueduto tinha de soçobrar».  

 Tribunal-Abílio-Rego abílioPortão e regoAntecipemo-nos: então o que é que de mais permanente e visível pode haver do que a valeta/rego que atravessa a rua no sentido norte-sul, valeta/rego a transbordar de água que entra no «bocanheiro» na base do muro com destino ao terreno dos AA, como tão bem mostra a foto que já coloquei mais acima e aqui recoloco, para melhor apreciação? E que mais de permanente e visível pode haver, no rego/levada, (promovidos a «aqueduto» no Código Civil) do que cerca de 2 quilómetros de manilhas abertas por onde deslizam as águas, a céu aberto, desde o açude de Vale de Vila, ao fundo de Vila Pouca, até à entrada da povoação, colocadas com dinheiros da CEE, nos anos 90, quando, a destempo, como já disse noutra parte deste trabalho, o Estado despertou para a necessidade dos REGADIOS, numa altura em que a agricultura já estava moribunda e o sector primário já não constituía a principal forma de vida? Que de mais visível e permanente pode haver do que os regos/valetas existentes ao longo das ruas e vielas dentro da aldeia, em direcção a cada horta, a cada quintal ou a cada campo dos moradores? Muito a propósito, deixo aqui o vídeo que fiz em 2008/2011 (para esclarecimento e não para contraditar o que veio a ser sentenciado, pois não tenho esses dons premonitórios) alojado no Youtube em 21/09/2011, com o título «Fareja, história com gente dentro», onde se fala da Levada de Fareja e se mostram todas essas obras, ignoradas pela Meritíssima Juíza, no seu juízo? É só clicar:  http://youtu.be/HJvcP8HEs1Q

A Meritíssima Juíza, discorrendo sobre tal matéria, remetendo para os Mestres do Direito, esmiuçando o Código Civil e doutrina afim, bem pode ter produzido uma brilhante peça jurídica para oficiais do mesmo ofício, de acordo com os artigos e parágrafos únicos da lei, mas fê-lo em desconformidade com a realidade existente e com o uso e o direito das águas públicas que resolveu analisar, ignorando o que verdadeiramente elas eram. E bem o prova quando  diz estar por apurar «se eram públicas ou particulares», como veremos já a seguir no seu próprio texto.

Os habitantes de Fareja conhecem a palmo a Levada das Águas da povoação, sabem o que são as levadas que partem dos açudes para os moinhos, lameiros e terras, onde se ramificam em «regos» e «talhadoiros»; mas nada sabem de «aquedutos» na acepção jurídica do termo, como nada sabem das «levadas» turísticas da Madeira, nem o «aqueduto das Águas Livres, de Lisboa.   

A Meritíssima discorrendo em conformidade com o articulado legal e a terminologia grafada e usada nos Códigos, em abstracto, fê-lo também em desconformidade com o assunto que motivou a acção, v.g. a oposição à passagem do tractor para a saída do feno, fê-lo em desconformidade com os testemunhos produzidos em audiência acerca dos direitos de servidão dos AA, adstritos à moradia adquirida, desde sempre. E, fê-lo, finalmente, em desconformidade com o conteúdo do pedido formulado na p.i. que caiu sob a sua alçada. A magistrada, que deu esse assunto como «matéria de facto provada», a seu arbítrio, discorreu, opinou e decidiu, em «matéria de direito» para a qual não foi chamada a opinar, nem a decidir. Eis a parte final de tão fundamentada peça:

Cópia de rego3-sentença

10.7 – Ora, lido isto, reflectidas as proposições aduzidas aos autos, pela Meritíssima, acompanhadas da negação que faz sobre «existência de obras visíveis e permanentes, acessíveis à servidão para a condução de água desde a origem do respectivo abastecimento até ao prédio dos AA» e a afirmação valorativa dos testemunhos prestados em audiência, por si considerados «seguros, consistentes, coerentes e objectivos» em matéria de prova factual, derivando para o «direito», estranho é que tenha retirado ao «rego» e à «levada» os «sinais visíveis e permanentes», que a lei, atribui ao «aqueduto», ignorando que esses «sinais visíveis e permanentes» estão ao longo de toda a levada, regos e mais ramificações.

Face ao exposto e decidido, o meu advogado aconselhou-me a recorrer, pois a Meritíssima Juíza tinha ultrapassado o estipulado no Artº. 661º do Código de Processo Civil,  que no seu nº 1, limita a decisão do juiz nos seguintes termos: «a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir». Logo a magistrada opinou sobre «objecto diverso do que foi pedido».

Voltarei ao conselho do meu mandatário lá mais para diante. Mas, aqui e agora, para dizer toda a verdade, independentemente da linguagem jurídica ou popular usada in casu, importa dizer que sendo certo a magistrada, na visita que fez ao local, ter visto o «rego entupido» isso se deveu ao facto dos AA. estando a questão a decorrer no tribunal, dele não terem feito uso, aguardando a decisão judicial e estando o seu terreno inculto, regá-lo não tinha sido preciso. E para esse pormenor a chamou a atenção o meu mandatário, in loco, pois informado fui não ser habitual AA e RR «abrirem a boca» em visitas tais.

Estranha atitude esta da Justiça, pois, se alguma coisa há a explicar ao tribunal, no local, em busca da verdade, compreensível é que disso mais saibam os AA  e os RR dos que os seu mandatários. Acatei, civilizadamente, a informação, confiante, porém, de que a magistrada, ouvindo o que ouviu das testemunhas na audiência e vendo o que viu ali, concluiria facilmente que o  estado «entupido» do rego a céu aberto, se devia a isso mesmo e à demora na resolução da causa. E nunca à declinação de um direito.

(continua)

Ler 1428 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.