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terça, 17 março 2015 19:48

CAÇA FURTIVA - ARMAS DE CARREGAR PELA BOCA

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 Contemporânea do chó, da ratoeira e do furão era a arma de carregar pela boca, não raras vezes parceira inseparável do furão e da rede, na caça furtiva. Caçadores havia que nunca a designavam por arma, mas tão somente por "ferro". Geralmente era de um só cano, mas também havia as de dois canos paralelos, predecessoras das de "fogo central" que posteriormente sairam das fábricas.

O exemplar que ilustra este texto ostenta gravada na fecharia a marca "Tower" e, pelo polvorinho que lhe serve de complemento, trata-se de uma peça antiga. É uma peça arqueológica incapacitada de dar fogo, pois foi-lhe retirada a espoleta propositadamente. É uma peça de museu e disso não passa.

Polvorinhos cortadosFalar desta e de outras armas de carregar pela boca, digamos que do tempo da Maria Cachucha, é falar de "polvorinhos" e de "chumbeiras", os recipientes que transportavam a pólvora e o chumbo para o terreno da caçada,  uns e outros avoengos das mais variadas cartucheiras que, com os seus favos em círculo, viriam a ornamentar a cinta de caçadores e caçarretas em tempos posteriores. É que, nessas armas antigas, desfechado que fosse o tiro, preciso era recarregá-las e isso implicava, não apenas perícia e saber, mas ter à mão de semear o material indispensável. 

Todas as armas de caça e os seus apetrechos, dos mais simples aos mais sofisticados, no passado e no presente, evidenciam não apenas o gosto do seu proprietário, mas também as suas posses e estatuto social. E as fábricas, integradas num mundo de classes, então como agora, punham no mercado de tudo, desde um simples "ferro" pronto a dar fogo, sem quaisquer ornamentos visíveis, às armas munidas de "platinas" (meias ou completas) que prendem os olhos do mais bronco ser humano, mesmo aquele que, sem qualquer sensibilidade para a arte, se fica caçado de boca aberta a mirar e remirar os elementos decorativos nelas lavrados e distribuídos. Quem nunca estudou história, mas ouviu falar nas ordens do Clero, na Nobreza e no Povo, de mistura com a Burguesia, vá a um Museu de Equipamentos Cinegéticos e encontrará ali o retrato social de um país inteiro. Verá ali as marcas do tempo que se esvai e as marcas sociais que permanecem, com as nuances próprias da evolução humana na sua relação com a natureza bravia e em sociedade domesticada.

Ao meu museu doméstico pertencem os três polvorinhos que ilustram esta página. Todos feitos de chifre de vaca, só um deles mereceu trabalho artístico. Tem nele gravada a data de 1887 (mil oitocentos e oitenta e sete) que, conjuntamente com os demais elementos decorativos faz dele uma autêntica obra de arte. Foi usado por "Manoel Afonço, do Monte Novo" (Alentejo) feito por "JoAlexander" e veio à minha posse por herança, já que foi seu dono um avoengo da minha mulher, natural daquele concelho. Uma inestimável relíquia familiar, não só pela arte que incorpora, mas também por razões que nenhuma palavra explica.

Não era qualquer fabiano que tirava proveito de equipamentos destes. Manejá-los exigia experiência, inteligência prática, paciência e tudo o mais que distingue um bípede de um quadrúpede.

Na serra, desfechado o tiro sobre a vítima, havia que recarregar a arma. E o caçador experiente e treinado, fosse ele cavador de enxada, pedreiro, tamanqueiro, barbeiro ou relojoeiro, carregava-a em menos de nada. Tirava a rolha do polvorinho, inclinava-o sobre a mão em concha virada para cima e despejava nela a porção de pólvora bastante para um bom tiro. Nem balança de ourives fazia melhor calibragem. Logo de seguida entornava a pólvora para dentro de cano virado ao céu,  sem desperdiçar pitada. Batia ligeiramente com a coronha na biqueira do tamanco para acamar a pólvora  e, logo de seguida, metia um pedaço de papel de embrulho ou de jornal, ou um nico de trapo, ou um pedaço de folhelho de milho, ou musgo seco, ou liquens secos tão comuns nos trocos de castanheiros e carvalhos. Tudo material ao alcance da mão do caçador camponês. Fosse qual fosse o produto utilizado, ele era empurrado cano abaixo com a ajuda da vareta até apertar devidamente a pólvora. Mas isso não bastava. Um bom tiro não estava somente na porção de pólvora metida no cano, calculada assim, a olho e peso calibrado na palma da mão. Estava igualmente no aperto da pólvora que era feito com três ou mais batidas com a vareta solta, puxada toda acima e largá-la com a força julgada conveniente, força ditada pela experiência e sabedoria do caçador. Feito isto, a operação repetia-se, mas agora era o chumbo que deslizava da chumbeira Polvorinho-Arma-2 - Cópia(bolseta de couro ou de pano)  para a palma da mão como a areia desliza no gargalo da uma ampulheta. E o prato da balança que pesou a pólvora, pesa também o chumbo que, entornado cano abaixo, é imediatamente preso por um tampão levado pela vareta até encontrar resistência, até  aconchegar, sem aperto, as minúsculas esferas de chumbo que darão morte à peça sob mira ou, tiro falhado, deixá-la ir à vida. Daí correr na gíria dos caçadores que uns usam chumbo do "arco do cego" e outros da "bela vista".

Mas, para a descrição ficar completa, falta dizer que, acabada a operação de cano virado ao céu, o caçador põe a arma na posição horizontal, levanta o cão da espingarda que se manteve descido sobre a espoleta, retira o fulminante usado que servira de tampa, certifica-se se a pólvora espreita na espoleta e coloca um novo fulminante. E com este minúsculo artefacto no sítio dá por terminado o carregamento da espingarda. Só então ela está em condições de poder ser levada à cara e de poder ser descarregada com ou sem sucesso: tiro e queda, ou tiro e foge. 

Devo dizer que, desta tralha toda saída da indústria de armas, o fulminante era o artefacto que mais me impressionava. Não só pelo formato que tinha, mas porque, sendo tão pequeno, estava nele o sucesso ou insucesso da explosão que impelia o chumbo de encontro ao alvo. Concebido para servir de tampo à espoleta e incendiar a pólvora face à pancada do cão que sobre ele caía, repentinamente,  como martelada dada na cabeça de um prego que se pretende meter em madeira, ele tinha o feitio de um balde em miniatura sem asa, melhor direi, tinha o feitio de um dedal de alfaiate que, reduzido a dimensões mínimas,  só podia ser manipulado por dois dedos: o indicador e polegar. Mais tarde, nos trilhos da minha vida, lá no outro hemisfério, a respirar a maresia do Indico, vim a lembrar-me dele, todas as vezes que via um cipaio colonial com o kepi, sem pala, metido na cabeça, esse símbolo de autoridade e ordem,  duas coisas que o caçador furtivo sempre dispensou em qualquer ponto do mundo.


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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.