Trilhos Serranos

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sábado, 21 março 2015 11:16

CAÇA FURTIVA - O FURÃO

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O FURÃO

Nos meus tempos de juventude, uma das armas usadas na caça ao coelho era o furão, aquele mamífero carnívoro da família dos mustelídeos. Para caçar com esse animal esguio, pelo aveludado, olhos cintilantes que tudo captavam em redor movidos por uma curiosidade sem limites, era preciso ter licença. 

cacifoE mesmo depois das autoridades venatórias terem proibido definitivamente a caça com tão eficiente auxiliar, ele continuou furtivamente a desentocar as vítimas refugiadas nas galerias subterrâneas naturais ou por si escavadas, tal como nas talisgas naturais dos penedos, onde não chegava a mão de homem, nem cabia corpo de raposa, gato bravo, gineta e outros carnívoros que, muito antes do bicho homem se tornar espeleólogo, já eles todos dominavam os espaços escuros, naturais ou escavados, não para fazer estudos e desportos radicais, mas na sua titânica luta pela sobrevivência,  fosse na sequência de uma perseguição a escapulirem-se a uma matilha de cães "béu...béu...béu...ão...ão...ão...béu...béu...", fosse por escolha sua, como lugar de repouso e segurança, próprio para uma prolongada soneca, depois de uma lauta refeição, herbívora ou carnívora, conforme a espécie do refugiado.

A bem dizer, o furão é o elo que une claramente TERRA, HOMENS E BICHOS. Ele faz a ponte entre o homem pré-histórico das cavernas e o homem espeleólogo dos nossos tempos. Os primeiros faziam das cavernas a sua habitação e abrigo contra ursos e outros animais ferozes;  os segundos fazem estudo e desporto em tudo quanto é gruta e buraco, dando-nos a conhecer as ramificações pulmonares do planeta que habitamos. E o furão, pela sua configuração anatómica, impelido pela instintiva e ilimitada curiosidade, igualmente explorador de subterrâneos, não teme furar e descobrir cantinhos, jamais visitados pelos primeiros ou pelos os últimos.

Em casa dos meus pais, que me lembre,  houve dois furões em tempos diferentes. Ambos morreram esqueléticos com diarreias que escapavam ao meu entendimento. Mas hoje suspeito que tal se deveu à deficiente e desadequada dieta alimentar. Para ter um animal destes em casa exigia-se mais do que saber transportá-lo num cacifo, metê-lo num buraco e, com rede colocada a jeito ou espingarda aperrada, esperar que ele pusesse à luz do sol os animais que sossegadamente repousavam à sombra e no escuro. Exigia conhecer a sua dieta alimentar por forma a mantê-lo saudável, não bastando restos da comida doméstica, caldo de couve ou de galinha, leite e um ovo cozido de quando em quando. A partir do segundo que vi morrer nesse estado, apesar da minha pouca idade, sem leituras esclarecedoras, conclui que furão que tivesse o azar de migrar para a casa dos meus pais estava condenado à morte. Nunca esqueci e ainda sinto aquelas friorentas tremuras na palma da minha mão, nem aqueles olhos brilhantes a fitar os meus como que a pedirem-me misericórdia. Nunca esqueci o aconchego e os afagos que lhe dava, tentando aquecê-lo no meu colo, já que mais não podia nem sabia fazer. Nunca esqueci isso,tal como nunca esqueci dois episódios de caça que vivi com um desses infelizes.Rede-furão

Um dos episódios foi metê-lo numas covas que existiam na densa moita de carvalhiços, localizada numa das leiras da família dos Ramalhos, a caminho da Lameira de Lobos, sítio sugestivamente designado nas matrizes prediais da Repartição de Finanças, por  "Cova do Coelho".

Era ao fim da tarde. Fui à copeira onde ele tinha o ninho feito com palha, abri o postigo, meti-o no cacifo feito de rolinhos de palha e fitas de vime, e aí vou eu todo ancho armado em caçador, com os meus 14 ou 15 anos de idade. Chegado ao destino, escolhi o burado, corri a tampa do cacifo em forma de raquete de ténis de mesa, peguei no animal e ele, tlim...tlim...tlim, (todo o furão de caça era prendado com um colar onde pendia um  minúsculo guiso cujo toque informava o seu paradeiro)  penetra nas galerias subterrâneas, muitas delas deixadas seguramente pelas raízes apodrecidas dos carvalhos. Apressei-me a pôr a rede no buraco, não fosse algum coelho escapulir-se leira adiante. Deixei de ouvir o guiso, sinal de que o animal se afastara da entrada e estava a dar conta do recado. 

Esperei, esperei, esperei e nada. Nem coelho, nem furão. Caiu noite e infrutífero foi o chamamento que eu fiz, repetidamente, de buraco em buraco. Desisti e conclui que ele, faminto como andava, teria ferrado as suas agulhas de marfim no pescoço de algum láparo adormecido e, de barriga cheia, adormeceu enroscado e quentinho junto da vítima, coisas que ele sabia não ter no ninho habitual.

Impaciente e desgostoso recolhi a penates receoso da reprimenda que o meu pai me daria. Mas antes disso, sabendo que os Ramalhos iam frequentemente com os seus gados para aquela leira, passei pela morada deles, contei-lhes o sucedido e, caso para lá fossem, no dia seguinte, prevenidos ficavam para capturarem o bicho.

Cedo, cedo, ainda com as estrelas furavam o manto celeste, lá estava eu, mas do furão nem sinal já com o Sol a dominar o mundo. Dei-o por perdido. Mas dois dias passados, o furão despertou, veio à superfície e, tliim...tlim...tlim...foi interromper as agulhas da pastorinha que fazia umas meias de lã, sentada ao soalheiro. Não podia ser melhor. A cesta dos novelos serviu-lhe de berço de retorno à copeira onde, domesticado, de coleira e guiso ao pescoço, morreria não muito tempo depois.

O segundo episódio foi vivido conjuntamente por mim e pelo meu irmão Zé, mais velho do que eu um ano. Teríamos  os nossos 16 e 17 anos. Falo em caça furtiva fora de idade e sem licença. Ele, com a espingarda do nosso pai, uma Diana calibre 12, colocou-se na plataforma térrea que engolia um penedo, ali,  onde afloravam vários buracos vindos do interior. Eu fui meter o furão nos fundos, onde se abria o portão principal daquela catedral granítica que, por regra, abrigava mais coelhos do que algumas ermidas erguidas no topo dos montes. Pus a rede e esperei. Não demorou muito para ouvir um barulho estranho. Preparei-me para segurar a rede. Mas quê! Não era coelho. Surgiu-me ao pés uma raposa que me assustou deveras pelo inesperado. Recuei arrepiado  e ela levou tudo pela frente. O meu irmão, postado na cúpula da catedral, desfechou-lhe dois tiros seguidos tau...tau. Ela deu um trambolhão, acusando a chumbada certeira. Mas, tão rápida quanto caiu assim se levantou ...e ó patas para que vos quero. Em menos de um ai escapuliu-se da nossa vista. 

                                    
E lá se foi para sempre. E para sempre me ficou na memória quer o susto, quer o episódio que aqui registo passados tantos anos. São pegadas minhas nos trilhos da vida. Nem podia deixar de ser. Eu, serrano assumido, dá-me gozo rasgar, ratar, esburacar, furar o tecido acetinado que forra algumas vestimentas de políticos e académicos que, hoje como ontem, numa atitude administrativa e cultural centralizadoras, desertificaram metade do país e consideram provinciano, senão mesmo pacóvio, remar contra a maré, denunciar atrevidamente essas formas de pensar e de governar, não ir na onda e romper o aparo da caneta ou o teclado do computador  a escrever sobre as formas de vida rústica, os valores e hábitos das gentes camponesas, a sua inteligência, a sua burrice, a sua esperteza, as suas artes e manhas usadas para enganarem as autoridades venatórias e, dessa maneira, poderem ferrar o dente numa peça de caça de pelo ou de pena. Gentes que povoaram Portugal e que continuam a mantê-lo de pé com todas as dificuldades conhecidas, diagnosticadas e vividas.

Furao cacifo

Era o tempo da caça furtiva com o chó, com a ratoeira ou com o furão, por necessidade. Era o tempo do casaco de burel, do colete de burel, da calça de burel fabricado nos teares e pisões locais com que se vestia o homem serrano, o labroste, como lhe chamava Aquilino Ribeiro, que apertava as narinas com o polegar e atirava o monco para longe. Era o tempo da necessária fuga ao fisco muito antes da sucedânea e sofisticada roubalheira praticada hoje por alguns governantes, alguns empresários e outros tantos banqueiros ditos evoluídos e civilizados que assoam o nariz com um lenço de seda e guardam o ranho  no bolso do seu casaco Armani. E desses ranhosos, como se vê, eu não gosto mesmo nada.











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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.