Trilhos Serranos

Está em... Início Crónicas O VELHINHO
sexta, 25 setembro 2015 10:39

O VELHINHO

Escrito por 

A minha netinha mais nova (quatro anos de vida)  sentada nos meus joelhos (coisas de crianças...só mesmo delas), afaga-me a barba branca e, olhos esbugalhados, grandes como os do pai e da avó Mafalda, muito querida, de uma vez só, pergunta-me de rajada, carinhosamente: "porque tens as barbas, as sobrancelhas e os cabelos brancos ... assim tudo branquinho?" Respondi prontamente: "por ser teu avozinho. Todos os avozinhos (eles são tantos) têm a barba e cabelos brancos, se não forem carecas. "Como o Pai Natal?" interpela ela, pertinente, mãos irrequietas, aquele pingo de gente, naquela  sua idade de perguntas sem fim e infinita curiosidade. "Tal qual", respondi sorrindo, brincando e concordando com a imagem bonita aninhada na sua mente infantil. 

Avô e netos-RedE mil perguntas, mil respostas houve naquela conversa entre mim e ela, daquela vez. Já lá vai algum tempo, dois anos talvez.
Eu disse sempre "avozinho". Não menti, não. Mas podia ter dito "velhinho", só que velhinho então, eu ainda não me sentia.
Mas um dia, não há enganos, aos setenta e seis anos (agora já sabeis) um dos joelhos que serviu de cadeira à minha netinha e proporcionou aquela nossa conversinha pela vez primeira deu de si. Perdeu agilidade. Range, dificulta-me o andar. Dói. E quando estou sentado, imobilizado,  na cadeira onde tive aquela conversa com a minha netinha, vêm-me à janela da lembrança as estroinices da mocidade, revejo o caminho andado, desbobino o filme da vida, os tempos de pastor, a mobilidade de caçador a bater perdizes no monte maninho ou coutado em correrias de galgo. Foi na serra, foi na planície. Sadio, venci calor e frio, galguei subidas e descidas, atravessei montes e vales. E de joelhos,  bebi água de ribeiros e rios. Usufrui as belezas da Natureza. Todas e algumas mais. Não falo dos amores vividos envolvidos em feno, mato e trigais. De joelhos venerei e saboreei o amor no templo do prazer e da vida, naquela entrada e saída, naquela romaria de ida e de volta, de volta e ida. Um homem livre.  E nessa romagem ao passado, próximo ou distante, pernas cansadas, ofegante, lembro tombos, quedas, alguns arranhões, mas de incapacitante,  nada. Hoje não tenho ilusões. A Natureza que nos prenda com tudo o que tem, sem nos darmos conta de que, atrás de ano, outro ano vem, paga-se em dobrado. E, não importa a idade, seja ela qual seja, homem ou mulher, dá-nos de bandeja,  sem avisar sequer, as mazelas que junta às belezas dela. 

É isso. E eu, de joelho medicado, de pensamento dorido, vencido pela natureza, arrasto-me até junto de  um espelho, ali ao lado.  E assim, olhos nos olhos, de pé, frente a frente (nem imaginam quanto dói), digo para mim: "estás velho". E assim, o homem que ali vejo   tal qual é, despede-se daquele que já foi: nem jovem, nem pastor, nem caçador, nem  "avozinho", nem nada. Se a minha netinha mais nova, mais os outros dois (uma menina e um menino) aqueles três pingos de gente, aquelas prendas da natureza,  aqueles três fedelhos, sentados nos meus hoelhos,  todos com o mesmo carinho, me perguntarem novamente porque tenho a barba e os cabelos brancos, dir-lhes-ei, com certeza e francamente: "porque sou velhinho!"




Abílio/setembro/2015


Ler 1201 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.