«E por falar em palavra, no que respeita a lidar com ela, de antemão me penitencio face às gralhas e erros que o leitor venha a encontrar em todo o livro. Para evitá-los, bem quisera eu ter do meu lado a mão amiga de S. Pedro, tal como teve São Leão (que foi Papa) quando acabou de escrever o tratado contra Nestório «o herege». Cómodo foi para ele deixar «o manuscrito uma noite sobre as relíquias de São Pedro, pedindo-lhe que se carecia de emendado o Santo apóstolo tomasse a si fazer as necessárias correções, antes do tratado sair à publicidade. Examinando o manuscrito ao dia seguinte, Leão notou que diferentes palavras tinham sido apagadas e substituídas por outras. Efetivamente o trabalho fora cuidadosamente repassado; e São Leão apressou-se em dar graças a Deus e a São Pedro»– Dâmaso – Vida dos Santos (Queiroz, 1979:136-137).
Mas como não tive essa mão amiga, e não é meu hábito escrever para a gaveta, amortalhar ideias com medo que o polícia da vírgula e da forma me venha excomungar, não há como assumir a responsabilidade dos atos que pratico sem recurso ao transcendental, ciente de que, podendo não fazer «bom uso da ciência e da língua», assumo o risco de poder acontecer-me o que aconteceu à Alma do cavaleiro Túndalo, a única que teve o privilégio de ir ao outro mundo e regressar a este para contar o que lá viu. Entre tanto «sofrimento» teve de ser engolida e dejetada por uma besta de boca flamejante, que engolia as almas para dentro da fornalha do seu ventre e deitava-as depois pelo traseiro, pois tal era o «castigo dos sabedores, que mal usavam a sua ciência e da sua língua» (Saraiva:1991:221)
Uf! Ainda bem que tudo isso já lá vai. É tempo passado. E se o terror incutido nas pessoas, por essas e outras obras de igual quilate, por esse e outros modos, ainda persiste em muitas almas do nosso tempo, terror que há de, seguramente, persistir no futuro, mal seria que o presente livro não servisse para o seu autor exorcizar os medos ‘traumatizantes’ que lhe incutiram em criança à revelia de toda e qualquer corrente psico-pedagógica e ao sabor de correntes metafisico-teológicas propagadas em Tratados de Devoção, sermões, catecismos e outras publicações doutrinárias.
Insubmisso, eu aqui expresso o meu adulto protesto, consciente de todos os custos da insubmissão. O INDEX continua por aí. As excomunhões continuam a fazer-se. Os seus praticantes pontificam nas nossas instituições políticas e culturais. Falam connosco. Sorriem-nos. Dão-nos palmadinhas nas costas, mas fazem das suas. É a honesta hipocrisia social em ação de que falava Aquilino Ribeiro. Contra ela me tenho batido em publicações. Contra ela me bato na presente publicação».
NOTA: extrato da introdução ao livro «Lendas de Cá, Coisas do Além», ed. em 2004