Trilhos Serranos

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terça, 19 janeiro 2016 19:00

GADANHA DA MORTE

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No dia 15 de outubro do ano passado realizei e alojei no Youtube, com imagens minhas a voz de Almeida Santos, um vídeo com a balada "Lá longe, ao cair da tarde". O seu falecimento transportou-me, agora, a Moçambique e, por conseguinte, a Lourenço Marques, onde o conheci, ele já com carreira consolidada no foro e eu a começar a carreira de trabalhador-estudante. 

Chegado ali, alojei-me em casa da minha irmã Elisa e do meu cunhado, Bertholdo Camacho, que, juntamente com Almeida Santos e outros jovens turcos, integravam a oposição ao regime. Desse grupo faziam parte republicanos, socialistas, comunistas e monárquicos. Eu, caloiro em tudo, limitava-me a ouvi-los naquelas tardes que, fora da cidade, íamos lanchar à pequena vila de nome Matola, na residência de um tal Medina Camacho, natural da Madeira, comunista confesso, sempre de cachimbo na boca e a baba a cair-lhe do canto da boca. Decorria o ano de 1961. E eu não tardei a saber que se a política os unia a todos, a política a todos havia de separar. Não estavam sintonizados no destino a dar aos "territórios ultramarinos". Nem todos apoiaram o manifesto político que Almeida Santos e outros tornaram público defendendo a autodeterminação das colónias. E posso sintetizar isso numa frase captada num desses convívios. O caso foi que Medina Camacho tinha um filho, guarda-livros numa firma com sede na cidade. Andava a aprender russo. Os outros, sabendo isso, perguntaram-lhe se ele tinha intenção de "mandar o filho para a União Soviética". A resposta foi pronta: "não, eles é que vêm para cá". Estava visto. Uns eram pela descolonização, outros não. 
As águas separaram-se, mas não antes de eu ter aprendido o suficiente para admirar e respeitar a opinião de uns e de outros. Todos o faziam por convicção e amor à Pátria. Uns, mais atentos aos ventos históricos do momento, enfunaram as velas e navegaram. Outros, por teimosia, contra os ventos ficaram. Ganharam os primeiros. Perderam os segundos. Mas a todos reconheço o arreigado patriotismo propalado, falado e escrito. Testemunha viva que fui de tudo isso, não podia deixar de escrevê-lo em memória de todos. Escrevi, está escrito, antes de chegar aqui o fio da gadanha.

Abílio/janeiro/2016

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.